Talvez tenha sido numa tarde de sábado, do primeiro semestre do ano letivo de 1980/81 que, no CEUL – Centro de Estudos Universitários de Lisboa, o Centro da Obra para jovens universitárias, alguém me perguntou: “Não queres levar o Caminho, o livro do Nosso Padre?”. “Sim, claro!” – devo ter respondido, não só por delicadeza, mas (disso estou certa) sobretudo por curiosidade!
Já tinha ouvido falar e queria ter a minha própria opinião.
Naquela altura (e ainda hoje) havia um autor que me apaixonava: Michel Quoist. Lia e relia o seu “Construir”, um livro que tinha sido da minha mãe e respondia a muitas das minhas inquietações.
O “Construir” também estava escrito por pontos, mais longos do que os do Caminho, num formato mais contemporâneo (dos anos 1960…), mas num estilo igualmente incisivo. Entre muitos outros, há um ponto que ainda hoje me ressoa: “casado ou solteiro, só o egoísta falha na vida”. Era um livro que apelava muito ao dom de si, ao entendimento do amor como algo inseparável do projeto de Deus para cada um de nós. Também me marcava a imagem do “Homem de pé”: o Homem que não era escravo do seu corpo nem da sua sensibilidade e, por isso, era livre para acolher o dom de Deus e fazer da sua vida um dom.
Foi aqui que o Caminho me encontrou, naquela tarde de sábado, junto à estante dos livros para venda no CEUL. Não foi um livro por que me tivesse apaixonado à primeira vista, nem a minha vida mudou no minuto seguinte… Sobretudo, queria estudá-lo.
Fui ao índice e…entrei diretamente no capítulo “Estudo”. Reparei no ponto 335: “Para um apóstolo moderno, uma hora de estudo é uma hora de oração.” Eu não era nada moderna mas gostava muito de estudar… A ligação entre estudo e oração atraiu-me logo! Naqueles anos, a oração, em alguns meios católicos, andava pelas ruas da amargura! Aparecia como um estorvo à intervenção cristã na sociedade, um formalismo que dificultava a sensibilidade social. Era quase um “não tema”, como diríamos hoje…Aquele ponto do Caminho dizia-me que estudo e oração não tinham que estar de costas voltadas! Isto eu já percebia!
Mais tarde, talvez depois dos testes semestrais, mais livre para “estudar” o Caminho, encontrei o ponto 427: “Senhor, que eu tenha medida em tudo…menos no Amor”. Amor com “A grande”, note-se. Era o mesmo Amor que eu lia no Michel Quoist, não eram maluqueiras… Quando cheguei aqui (e certamente a outros pontos do Caminho, mas lembro-me mais deste) pensei: “bem me parecia que aquilo da ‘religião como o sal na comida’ não devia ser bem assim.”
“A religião quer-se como o sal na comida. Nada de exageros! Mas um bocadinho de religião faz sempre falta na educação de uma senhora que se preze”. Eram frases da minha avó, nascida em 1904, transmontana, educada na 1ª República, “professora de Instrução Primária aposentada”, como gostava de dizer. Percebia-se… Mas naquela altura, eu não percebia nada!
Ouvia ainda falar de católicos fervorosos que tinham virado intrépidos comunistas! “Passaram de um exagero ao outro! Uns fanáticos!”, dizia-se em minha casa… E a mim diziam-me “Tu tens muita tendência para a beatice…vê lá no que te metes!”
E eu metia-me no CEUL, no sábado à tarde. A verdade é que, no CEUL, reparei logo numa coisa: o Padre Margarido Correia, não menosprezava quem ia à Missa ao domingo. Explicava-nos o sentido da Missa e incentivava-nos a fazer da nossa vida, de estudantes universitárias, uma Missa! Lá estava: tudo se inseria na lógica do dom! O Padre Margarido Correia até nos elogiava: dizia que, se estávamos ali, era porque já amávamos sinceramente a Deus, fazíamos muitas coisas boas e Deus queria servir-se disso, das nossas virtudes e da nossa juventude para nos levar mais longe, se quiséssemos! E aqui entrava a liberdade …para fazer o bem! A liberdade não era “ter muito por onde escolher” mas poder escolher o bem, tal como se apresentava à nossa consciência bem formada, sem que ninguém nos obrigasse ou proibisse! E com isto cheguei a outro “Mediterrâneo” (outra expressão do Caminho): afinal a liberdade era uma coisa boa! Ou seja, não era “uma maluqueira do 25 de abril” (como dizia a minha avó) e também não era “fazer o que me dava na cabeça sem ouvir sentenças nem dar contas ninguém”, como diziam outros.
Entretanto, comecei a ir à “Missa do Padre João Seabra”, na Católica, às 8h30. Tudo bons caminhos, aqueles em que eu me metia! O Padre João Seabra falava das mesmas coisas que eu lia no Caminho e ouvia no CEUL: o verdadeiro sentido do Amor, do pecado, da graça, da liberdade, da santidade.
E foi assim que o Caminho… entrou no meu caminho! Limpou (delicadamente!) algumas influências, confirmou outras, despertou inquietações, consolou-me muitas vezes! “Dá-Lhe (a Deus) graças por tudo, porque tudo é bom!”- lê-se noutro ponto do Caminho e vem mesmo a propósito!
Muitos, mas muitos anos mais tarde, li noutro livro: “Hoje estás aqui – precisamente no lugar onde deves estar. Confia no fio resistente que une os momentos da tua vida. Ele foi tecido com Amor.” Outra vez o Amor, o tal Amor com “A grande”: o Amor do Caminho, o Amor do “Construir”, o Amor das Missas do Padre João (na Católica às 8h 30) e das meditações do Padre Margarido Correia (no CEUL, aos sábados à tarde). Afinal…é o Amor, pelo qual “seremos julgados no ocaso da vida” (S. João da Cruz).