O mais lindo espetáculo dos últimos tempos não foi a posse de Lula, escoltado por Fidel Castro, Hugo Chávez e uma penca de veteranos do terrorismo, numa praça adornada de milhares de bandeiras vermelhas e nenhuma do Brasil. O mais lindo espetáculo dos últimos tempos é a tranquilidade com que, diante disso, a mídia nacional assegura que não há mais comunistas em ação no mundo e que o país, no novo governo, tem o futuro assegurado de uma genuína democracia.
Nunca uma mentira tão óbvia foi sustentada com tão acachapante unanimidade, num insulto coletivo à inteligência popular, que, ao não se sentir ofendida por isso, mostra não ter mesmo muito respeito por si própria.
Não encontro precedentes históricos para tão estranho fenômeno, mas encontro paralelos em outros que, ao mesmo tempo, sucedem na mesma mídia. Querem ver um? A onda de indignação geral contra Chávez é mil vezes maior e as acusações que pesam sobre ele mil vezes mais graves do que tudo quanto, no Brasil, bastou para dar razão de sobra à derrubada de Collor. Não obstante esta é celebrada até hoje como uma apoteose da democracia, enquanto o movimento dos venezuelanos é pejorativamente rotulado de “tentativa de golpe”.
A duplicidade de critérios é tão patente, tão descarada que ela basta para mostrar que o jornalismo nacional está morrendo, substituído pela propaganda pura e simples. Muitos jornalistas negarão isso, fazendo-se de escandalizados, mas suas caretas de dignidade afetada não me convencerão. Pois eles próprios não escondem seu orgulho de ter abandonado as antigas regras de objetividade e isenção para adotar uma ética de dirigismo militante. Não querem mais ser meros portadores de notícias. Querem ser “agentes de transformação social”. Um agente de transformação não se contenta em dar informações: manipula-as para produzir um efeito calculado. Os jornalistas brasileiros estão de tal modo adestrados para isso que já o fazem até sem perceber.
Como chegaram a tanto? Uma pista reside na influência exercida sobre eles, como sobre a totalidade das classes falantes, da leitura de Antonio Gramsci, hoje a obrigação central e quase única de quem passe por estudos ditos “superiores” neste país. Para que haveriam de embeber-se tanto das idéias de Gramsci, se fosse para se absterem de levá-las à prática? Mas essas idéias têm uma propriedade notável: quanto mais um homem se intoxica delas, menos percebe o que têm de imoral e perverso.
Visto sem as lentes da devoção boboca, o gramcismo não passa de uma sistematização de intrujices. A hegemonia, segundo ele, deve ser conquistada pelos partidos de esquerda mediante “ocupação de espaços” na mídia, na educação etc. Ora, o que é “ocupação de espaços” senão mútua proteção mafiosa entre militantes, recusando emprego aos adversários e institucionalizando a discriminação ideológica como princípio de seleção profissional? Trinta anos dessa prática e já não resta nas redações nenhum anticomunista. Dividido o espaço entre esquerdistas, simpatizantes e indiferentes, ninguém reclama e todos sentem viver na mais confortável democracia. A consciência moral dos jornalistas de hoje é pura inocência perversa.
Mas Gramsci não era um intrujão só na estratégia política. Manipulador, não hesitava em contar à filha pequena velhos contos de fadas esvaziados de seu simbolismo espiritual e adulterados em grosseira propaganda comunista. Sua própria imagem histórica é uma farsa. Beatificado como encarnação do intelectual proletário, só trabalhou em fábrica por tempo brevíssimo.
Chamar Gramsci de maquiavélico não é força de expressão. Filho de um corrupto, ele era neto espiritual do megacorruptor florentino. Orgulhava-se de ser discípulo de Maquiavel e descrevia o “Partido” como o “Novo Príncipe”, encarnação coletiva do astuto golpista palaciano que conquistava o poder pisando nos cadáveres dos que o tinham ajudado a subir. Quando o Partido está fraco para o assalto direto ao poder, dizia Gramsci, deve formar um amplo “pacto social” baseado no “consenso”, mas conservando para si a hegemonia, o primado das idéias e valores que soldam a aliança. Os aliados, acreditando agir no seu próprio interesse, serão levados a amoldar seu pensamento às categorias admitidas pelo Partido, que, parasitando suas energias, livrar-se-á deles no momento devido.
Gramsci não é maquiavélico só no sentido vulgar d´“O Príncipe”, mas também naquele, mais sutil e maldoso, dos “Discorsi”. Nesta obra pouco lida, Maquiavel revela seu intuito de colocar o Estado em lugar do próprio Deus. Gramsci apenas acrescenta que, para isso, é preciso antes um Partido-deus. É aí que sua malícia chega a requintes quase demoníacos. Ele considerava o cristianismo o principal inimigo do socialismo. Sonhava com um mundo em que toda transcendência fosse abolida em favor de uma “terrestrialização absoluta”, na qual a simples idéia de Deus e de eternidade se tornasse inacessível.
Mas não queria destruir a igreja como instituição, e sim usá-la como fachada. Para isso, propunha que os comunistas se infiltrassem nela, substituindo a antiga fé por idéias marxistas enfeitadas de linguagem teológica. Assim, a pregação comunista chegaria às massas sob outro nome, envolta numa aura de santidade.
A maior fraude religiosa de todos os tempos está hoje coroada de sucesso, o que não torna menos deformada e monstruosa a mentalidade do seu inventor. Nem menos desprezível a daqueles que o admiram por isso.
Publicado na edição de 7 de Janeiro de 2003 da Folha de São Paulo