Ariano Suassuna é um dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta, professor, advogado e palestrante brasileiro. Ele é autor de mais de trinta obras consideradas insignes, entre as quais destacam-se duas como magna opera: o “Auto da Compadecida” e o romance intitulado “Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”, este editado em 1971. No texto de hoje, destacamos a chamada obra-prima do autor, a peça teatral “Auto da Compadecida”, a qual foi encenada pela primeira vez em 1956, no Teatro Santa Isabel, em Recife.
Trata-se de uma peça dividida em três atos e que tem como pano de fundo o sertão nordestino; além disso, ressaltamos que o “auto” literário surgiu na Espanha, no século XII, expandiu-se em Portugal, no século XVI, e cujas características são a linguagem popular, as tiradas cômicas e a intenção moralizadora; seus personagens, ou melhor, seus tipos simbolizam ora as virtudes, ora os pecados, e representam ou os anjos e santos, ou os demônios tentadores; a moral é um elemento decisivo nesse tipo de auto (ou “ato”, “ação”, em latim).
A obra foi uma das primeiras produções teatrais de nosso país a carregar forte na tradição popular. Caracterizada pela marcante presença do humor, a história ganhou um público ainda mais amplo em 1999, quando foi adaptada para a televisão – uma minissérie da TV Globo – e, no ano seguinte, virou longa-metragem: as aventuras de João Grilo e Chicó fazem parte do imaginário coletivo brasileiro e retratam com fidelidade o dia a dia daqueles que lutam pela sobrevivência em um meio adverso.
Nesta peça, conta-se o drama ocorrido na região Nordeste do Brasil, com elementos da tradição da literatura de cordel, do gênero comédia e traços do barroco católico brasileiro; a obra mistura cultura popular e tradição religiosa. Para que se esclareça: literatura de cordel é uma forma de escrever popular, é um gênero em que a rima habitualmente predomina, e essa produção é exposta em pequenos folhetos que são pendurados em cordas ou cordéis, o que remonta a uma tradição portuguesa do século XVI.
Quanto ao estilo do barroco católico em nosso país, este tipo de escrita e de comunicação oral explora os termos rebuscados, o adorno das palavras cristãs, o que também foi herdado de nossa origem lusitana, e o qual se faz notar copiosamente, nas falas de seus principais personagens.
Outro traço caraterístico desse texto é o constante emprego dos regionalismos, pelo fato de a história se passar no Nordeste, região em que o autor nasceu. Antes de avançarmos ao resumo desta obra que analisamos, devemos destacar que a mesma projetou Suassuna em todo o país e a peça foi considerada por especialistas literários, em 1962, como “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”, dada sua relevância nacionalista.
Como já sabemos, o “Auto da Compadecida” tem como cenário o sertão e mostra os problemas que as pessoas mais simples enfrentam naquelas paragens, como a seca, a extrema pobreza, o coronelismo e ainda um cangaceiro; ela exalta os humildes e satiriza os poderosos e os religiosos que se preocupam apenas com suas questões materiais, ao invés de se dedicarem ao bem-estar do zé-povinho tão necessitado.
Resumo da peça: na primeira peripécia, há a tentativa do enterro cristão do cachorro Xaréu, animal de estimação da mulher do padeiro; os dois personagens principais, João Grilo e Chicó, pobres e astutos, e que vivem arranjando confusões, vão à igreja para pedir ao pároco que benzesse o “defunto”, mas o padre não concordou, então João disse que o cachorro era de um senhor poderoso da região, e que o cão deixara uma soma em dinheiro no testamento com a condição de que fosse “enterrado em latim”; assim, ao final desse primeiro ato da narrativa, a situação se resolve pelo “aproveitamento” pecuniário.
Nas duas próximas peripécias que preenchem a segunda parte da peça, aparecem, sucessivamente, um gato que “descome” dinheiro, o que ocasiona o desejo de todos os moradores, e ainda um instrumento musical que seria capaz de ressuscitar os mortos; como estamos vendo, um auto desse tipo é, certamente, uma obra teatral repleta de “fantasia”, quer dizer, onde a imaginação não tem barreiras, onde a invenção torna-se cotidiana, a bizarrice revela-se normal e, finalmente, onde as situações ridículas ajudam a desopilar da dura realidade aqueles que as assistem.
Passamos ao terceiro e último ato da peça, e neste ocorre o julgamento dos personagens que foram mortos pelo cangaceiro matador, Severino de Aracaju, e do próprio Severino, morto por uma facada de João Grilo; Severino é julgado por seus atos em terra e tem como juízes um anjo e um demônio; mas a compadecida – ou Nossa Senhora – aparece para salvar estes condenados.
Fica bem claro, assim, o cunho de sátira moralizante da peça, que assume uma posição cujo foco está na base da pirâmide social, sendo a zombaria a melhor maneira de desvelar os discursos mentirosos das autoridades e integrar os homens e mulheres por meio da compaixão, a qual só os desprendidos podem desenvolver a seu próprio favor. Neste aspecto, a moral que se depreende da peça é muito semelhante à do cristianismo primitivo, que se baseava no preceito “amai-vos uns aos outros”.
Analisando o texto teatral um pouco mais, observamos a atmosfera circense que impregna o enredo da peça e também é relevante que se destaque este trabalho de montagem e moldagem baseado em uma tradição antiquíssima, que remonta aos autos medievais de Gil Vicente (séculos XV e XVI), e mais diretamente a inúmeros autores populares que se dedicaram ao gênero do cordel.
Neste tipo de literatura, os criadores contam e recontam as mesmas histórias e acrescentam o seu “toque pessoal” a cada trabalho artesanal. Ao resgatar essa tradição de nossa remota cultura, Ariano Suassuna realiza uma leitura da moral católica muito ajustada aos tipos que cometem gestos transgressores. Outra linha de força desta peça é a presença do anti-herói ou herói quixotesco, uma espécie de personagem folclórico que vive ao sabor do acaso e das aventuras; João Grilo é esse típico anti-herói que se envolve com os demais personagens e que se compromete com as próprias mentiras; entretanto, é através dele que o autor propõe um exame dos valores sociais e da moral estabelecida; em outras palavras, Suassuna permite-nos refletir sobre nossa fragilidade e sobre a disposição especial que temos para receber influências em nossas convicções.
Ainda, e finalizando nosso comentário: sabemos que o elemento religioso, a fixação da cultura popular, a presença do anti-herói e a linguagem simples bem articulada nas falas dos personagens são elementos cuja combinação constitui a arquitetura e a lógica do “Auto da Compadecida”; mas, simultaneamente, vale reforçar que Ariano Suassuna traz à tona reflexões de ordem moral por meio das quais problematiza as fraquezas humanas, relativizando valores e “certezas”. Como tal “provocação” consegue arejar nosso pensamento, e que bom que tal aconteça, pois ela nos proporciona um novo olhar sobre a realidade e uma renovada perspectiva crítica do que pensamos saber!