Ouviu-se o bater da porta da moradia acanhada, uma entre tantas estreitas casas de tijolinhos escuros, mal enfileiradas numa ruela encharcada de chuva e águas servidas, mal drenada por sua canaleta central naquele início de noite em Londres.
“- Karl, você se molhou? Tire o sobretudo, as botas e ponha mais carvão no aquecedor!”
“- Sim, Jenny querida! Você, hein? Sempre ranheta, mal-humorada, não é mais aquela idealista de antigamente, que me recebia alegre e cheia de novidades pra contar. Agora é só: pegue o carvão!… tire o sobretudo!…”
“- Claro que não sou! Estou velha! E o senhor, outro velho, some por dois dias, seu sem-vergonha, sem enviar notícia, chega ensopado e cambaleando, e eu tive que cuidar da casa, sem dinheiro pra comprar comida e tendo que reescrever seus textos, que estão cada vez piores e mais mal escritos com essa letra que é ruim não só pelas suas bebedeiras, mas também por seu desleixo. Só idiotas se interessam pelo que você escreve. Espero que pelo menos o Friedrich ainda lhe tenha dado algum dinheiro. Temos que pagar muitas contas atrasadas.”
“- Háh! Enquanto houver trouxas no mundo, sempre vamos pagar as contas…É só dizer pro Fritz que somos amigos por uma causa, que tenho novas ideias para a formação do mundo novo, e o barata tonta se anima pra soltar mais uns trocos. Trouxe aqui uma boa quantia em moedas. Não vou dar tudo porque tenho contas a pagar, senão não me deixam beber mais”.
“- Você esquece, Karl, que com sua irresponsabilidade, já passamos até fome! Nossos filhos sofreram! Se esse sujeito nos faltar, não sei o que vai ser de nós.
“- Vida longa ao meu amigo Friedrich, é como sempre brindo àquele ricaço idiota…não entende a ironia… que tonto! E ainda acredita em tudo que falo, tudo que escrevo! Além do mais, adora escrever sobre tudo que conversamos enquanto ele paga as cervejas”.
“- Karl, você não se envergonha? Maldita hora em que decidi sair por aí atras de você pra consertar o mundo. Me arrependo de ter acreditado nesse monte de ideias idiotas que você e seus amigos inventaram. Nem você acredita mais nas suas ideias, se é que alguma vez acreditou. Eu acreditei, mas acho que você não. Só fez isso para afrontar seu pai, que queria que você fosse advogado. E pra ofender seu irmão rabino! Eu acho isso uma pouca vergonha!”
“- Advocacia é muito cansativa! E não me lembre do meu irmão! Nem quero pensar nele!”
“- Ora, Karl! Cada vez me convenço mais que você tudo que você fez sempre foi pra enterrar suas origens e o nome Mordechai.”
“- Acontece que eu sou um filósofo profissional puro, sem amarras religiosas, familiares ou sociais! Dê-me um tema ou uma ideia aleatória para defender. Mesmo que ela seja absurda e sem sentido, eu a defenderei com argumentação irrefutável, vou carrear seguidores e conquistar admiradores! Isso é competência e eu a tenho! Eu sei que você vai dizer que até hoje só umas duas dúzias de desavisados caíram na minha conversa, mas lembre-se, minha querida, que não há limites para a idiotice humana. Quem lhe garante que daqui a vinte ou trinta anos não haverá hordas de seguidores a propagar e aplicar minhas propostas? Bem trabalhadas, e no ambiente certo, elas podem convencer!”
“- Bah, Karl! Eu só posso lamentar por ter sido a primeira ingênua a cair na sua lábia. Minha família tinha posses, eu teria tido uma vida muito melhor e teria sido mais útil para os meus filhos se não tivesse me amarrado a você, um bêbado, um fanfarrão! Espero, do fundo do meu coração, que você nunca consiga mais adeptos para suas teorias. Partindo de quem partiram, é certo que não serão boas. Com certeza irão causar tantas desgraças quanto as que aconteceram em nossa família. E tire essas suas botas imundas, que estão emporcalhando a casa!”