A Guerra da Ucrânia que nos é mostrada em direto diariamente na televisão não é mais cruel ou menos cruel do que qualquer outra guerra. A guerra é a crueldade em absoluto. Não há guerra sem crimes de guerra, disse Voltaire, filósofo francês do sec. XVIII. Uma tática de guerra utilizada desde tempos imemoriais é o cerco, também chamado sítio ou assédio, a uma cidade privando-a de ter acesso a mantimentos, levando-a a render-se ao inimigo. Hoje, o termo assédio refere-se a pessoas quando são pressionadas a fazer qualquer coisa que não querem. Sítio já não se usa com o significado de cerco, mas o seu derivado sitiado lembra ainda o sentido primitivo, referindo-se a pessoas que se encontram em recintos fechados sem possibilidade de saírem, quer se trate de cidades, como Mariupol, na Ucrânia ou de reféns em edifícios. O único objetivo de uma guerra é roubar; ontem e hoje, o objetivo é roubar. Não vale a pena grandes análises, grandes considerações sejam elas de que ordem forem. Roubar território, roubar o acesso ao mar, roubar as rotas de comércio, ou até roubar as mulheres, como aconteceu, segundo a lenda, no início da História de Roma. Os fundadores de Roma eram apenas homens e precisavam de mulheres para casarem. O povo vizinho, os Sabinos, negara-lhe as suas filhas e, então os Romanos invadiram-no e raptaram-nas. Esse feito encontra-se imortalizado na Praça da Senhoria, em Florença, numa escultura de Gianbologna. Ao longo da sua História, Portugal sofreu vários cercos. O mais famoso é o que ocorreu em Lisboa em 1384, quando o rei de Castela cercou Lisboa para revindicar o trono português que, por direito, pertencia a sua mulher, D. Beatriz, filha do último rei da primeira dinastia, D. Fernando. O cronista Fernão Lopes, baseado em relatos feitos por alguns dos sobreviventes, narra-nos o drama que foi esse cerco, com a cidade cheia de gente de fora, que aí tinha acorrido para se proteger da invasão, além dos moradores próprios. Em consequência, era grande a escassez de mantimentos. O exército cercava acidade por terra, e a armada castelhana barrava a entrada pelo Tejo. Fernão Lopes convida os leitores a olharem, como se estivessem presentes, uma tal cidade assim desconfortada, sofrendo ondas de tais aflições. Diz ele: «no lugar onde costumavam vender o trigo, andavam homens e moços esgaravatando a terra; e se achavam alguns grãos de trigo, metiam-nos na boca sem outro alimento; outros fartavam-se de ervas e bebiam tanta água que achavam mortos homens e cachopos jazer inchados nas praças e em certos lugares.»
«Andavam moços de três e quatro anos pedindo pão por amor e Deus, como lhes ensinavam suas madres; e muitos não tinham outra coisa que lhes dar senão lágrimas que com eles choravam que era triste coisa de ver; e, se lhes davam tamanho pão como uma noz, haviam-no por grande bem.»
«Desfalecia o leite aquelas que tinham crianças a seus peitos, por míngua de mantimentos; e, vendo lazerar seus filhos, a que acorrer não podiam, choravam a miúde sobre eles a morte, ante que os a morte privasse da vida[…].»
«Os padres e madres viam estalar de fome os filhos que muito amavam, rompiam, rompiam as faces e peitos sobre eles, não tendo com que lhes acorrer senão pranto e espargimento de lágrimas.» Fernão Lopes, Crónica de D. João I,1434.
Assim foi, assim é, e assim continuará a ser, enquanto se construírem armas cada vez mais mortíferas, cada vez mais destruidoras. E enquanto o Homem for cada vez mais sedento de poder absoluto e fizer das mulheres, dos homens e das crianças joguetes da sua ganância.