O Armazém Licks estava orientado para o poente, e ao fim de cada dia de trabalho fechava suas portas e janelas, quando também o sol findava a jornada, se escondendo atrás do Morro da Pedreira (que chamávamos da Favela). À nossa frente só havia um terreno baldio sem construções, de modo que os olhos podiam assistir o jogo de luzes sempre novo do crepúsculo, ao cair da noite. Numa ocasião dessas, eu estava atrás da balança de pesar produtos do armazém, na ala direita do balcão central. Fechando um olho e ajustando a mira do outro, pude ver o disco vermelho do sol pousando sobre o prato da balança, antes dele sumir atrás do morro. Foi um momento especial, em que se misturaram fascínio e tristeza, talvez a primeira intuição que tive da morte, quando ainda nem conhecia essa palavra. Depois, na primeira vez que me levaram ao cemitério, achei natural que fosse atrás do morro.
Caminho entre as sepulturas, com ideias e sentimentos desencontrados. A última vez que estive aqui, faz muito tempo. Lembro que havia flores frescas em muitos jazigos, que pareciam limpos e bem cuidados. Sim, foi um enterro num dia de sol radiante, o cemitério parecia um lugar tão bonito… Agora tenho a impressão de estar caminhando pelas ruas de uma cidade fantasma, onde não mora mais ninguém. E o sol radiante ilumina o abandono. E a ação dos ladrões. No nosso jazigo roubaram as fotos e arrancaram as letras em metal, os nomes dos nossos mortos. E algum vaso, um crucifixo talvez… Mas numa sepultura ao lado o assalto foi mais drástico, arrombaram as lápides e cavoucaram na terra da tumba, remexendo os ossos em busca de algum anel, algum dente de ouro, algum brinco…
No escritório da empresa funerária a moça nos conta que apenas uma que outra idosa vem cuidar dos túmulos, mesmo porque essa atividade faz bem à pessoa, é uma terapia. Mas entre os jovens, ninguém mais quer saber de recintos funéreos, sepulcros, campos santos… Todos preferem a cremação sumária. E, diante das evidências, nós também.
No antigo Egito, no processo de mumificação, eram retirados os órgãos internos da pessoa morta, mas o coração era mantido. Isso porque o morto deveria passar pela „pesagem do coração“, no julgamento do submundo, diante de Maat, uma deusa jovem com uma pena nos cabelos. Ainda que o faraó fosse enterrado com grandes riquezas, ele só alcançaria a vida eterna no paraíso se o seu coração, colocado num prato da balança, pesasse menos que a pena de Maat, no outro prato. Na Sala das Duas Verdades o falecido deveria provar sua pureza: eu não matei, não espalhei mentiras, não torturei alguém, não fui contra a lei, não fiz o mal… Passaram-se os séculos, e a questão da morte e do céu ficou sob a tutela da Igreja, que também é a proprietária das terras sepulcrais, como nos informou a funcionária.
Continuo a caminhar, parando se vejo algum defunto conhecido ou com o sepulcro violado. A instituição do cemitério vai ser extinta entre nós, ao que parece, penso comigo. E num flashback, lembro quando fui com Augusto ao cemitério Père Lachaise em Paris, para visitar a sepultura do Jim Morrisson. Ao dobrar uma esquina nos deparamos com uma montanha de flores frescas, como nunca tínhamos visto, era sobre a tumba do Allan Kardec…
De repente vejo algo inusitado na desolação, um homem limpando os vasos de um túmulo, e falo animado:
– Bom dia! Então o senhor está aí cuidando dos seus mortos, né?
– Eu? Não senhor – ele diz rindo. Estou cuidando de nós, que estamos vivos. Estou tirando a água desses vasos, que só ficam criando mosquitos do dengue… E segue para outra sepultura.
É, se trata de uma grande mudança na vida das pessoas, vou pensando. E lembro da primeira vez que vim ao cemitério, junto com a mãe, para olhar pela tumba do irmãozinho, morto aos dois anos. A verdade é que fiquei mais interessado em olhar a parte traseira dos morros, era meio assim como olhar a face oculta da lua…
O cemitério tem uma parte católica e a outra protestante, onde vejo com surpresa um grande número de estátuas.
Ué, sempre achei que, desde Lutero e Calvino, os protestantes eram inimigos de imagens e estátuas… Ao me aproximar de um grande anjo de pedra, de olhos brancos sem pupilas, cruzo novamente com o tirador de água do dengue.
– O senhor trabalha para o serviço de saúde do município?, pergunto.
– Hein? Não, eu sou o coveiro daqui, ele responde.
Opa, as luzes do palco se acendem e entram em cena os dois únicos coveiros que eu conhecia até então, no Ato 5 da peça do Shakespeare. Eles entram falando sobre o suicídio de Ofélia, e, em tom de blague, sobre como a desigualdade social faz com que apenas os ricos e nobres gozem de poder e liberdade, e aos pobres não é dado nem o direito de ter um enterro cristão. Falam da corrupção na sociedade, e do seu próprio valor. E o primeiro coveiro fica alfinetando o outro: – O quê? Você nunca leu as escrituras? Lá tá escrito: „Adão cavou a terra“. Minha pá, venha cá, cavemos a cova. Não existe nobreza mais antiga que a dos coveiros, eles mantêm a tradição de Adão, o primeiro coveiro. Vou te fazer uma pergunta, se não responder bem, ganha atestado de burrice. Quem constrói com mais solidez que o pedreiro, o carpinteiro ou o construtor de barcos? Vai, desembucha.
– Nossa, tá difícil, diz o segundo.
– Não maltrata teus miolos, dar pancada em burro empacado não faz ele andar -, diz o primeiro. Quando fizerem essa pergunta, responda: – O coveiro, pois suas moradas duram até o juízo final. E manda o outro dar uma saída, pra comprar um trago. E aparece Hamlet, e vai conversar com o coveiro, que vai pegando um crânio depois do outro, os examina e volta a jogá-los na terra, sem nenhum cuidado. Hamlet, o príncipe humanista que via o papel nivelador da morte sobre toda a humanidade. Hamlet que monologa: „quem sofrer quisera ultrajes e castigos, injúrias da opressão, das leis a inércia, dos mandões a afronta, e o vão desdém que de rasteiras almas o paciente mérito recebe, se na ponta da despida lâmina…“, quase meio século antes das revoltas por uma sociedade mais justa, entre 1640 e 1660.
Mas agora, pela primeira vez, tenho diante de mim um coveiro em carne e osso. Não resisto e pergunto na lata.
– Cada vez mais as pessoas estão assaltando o cemitério, para roubar coisas que depois vendem. Qual a explicação para isso? Será que é obra do Diabo, que entra nas pessoas? Ou a causa é a profunda desigualdade social que existe no nosso país? Se colocamos na balança essas duas explicações, qual delas pesa mais?
O coveiro esboça um sorriso tímido e nada me responde… Aí eu pergunto algo mais simples.
– O senhor seguiu a profissão de coveiro, acha que foi uma boa escolha? Para minha surpresa, essa pergunta entra como um dardo envenenado no homem. Seus olhos se umedecem, seu corpo se encurva abatido e ele senta numa borda de sepultura, silencioso e cabisbaixo, ao lado do anjo de pedra. Depois de alguns momentos ele ergue o olhar angustiado e diz:
– Não, não foi uma boa escolha… Já fazem trinta anos que estou aqui, cavando covas e enterrando gente de todo tipo, velhos e crianças, mulheres, homens… Isso que o senhor vê – mostra o cemitério estendendo o braço – é um campo semeado de ossos e sentimentos das pessoas, regado com as lágrimas dos que perderam seus entes queridos… E tudo isso foi entrando em mim, no meu corpo, na minha mente… Eu sou parte desta roça de defuntos… Não foi uma boa escolha. Mas o que fazer?
São os ossos do ofício…, ele conclui, mais conformado.