Estamos já há quatro dias por aqui. Na Casa dos Universitários tivemos uma entrevista com o diretor e ele nos deu vales para comer no restaurante, até dia 18. As coisas vão se encaminhando. Vamos dar um pulo lá no correio, ver se tem carta na Posta Restante.Tá tudo em cima, vou contar qual é a rotina das nossas trôpegas existências.
Somos madrugadores, às sete da manhã Danilo e eu acordamos no salão de beleza, com um suave tapinha no ombro do Barroso. Ele dorme de camisola cor-de-rosa, numa cama de casal que ao despertar ergue e transforma numa parede, coberta por um veludo azul. Dali vamos a alguma padaria, ganhar o pão nosso de cada dia. E partimos para tomar café na casa do Cae. Depois cada um vai cuidar dos seus afazeres, o que para mim significa ir à Biblioteca. Ou passear pela cidade, sentar nalgum canto e tocar violão. Ao meio-dia, almoço no RU, seguido de uma vagabundagem para a boa digestão, que frequentemente leva ao cais do porto. Estamos fuçando uma carona para Belém. Por terra não é possível. Nestes momentos pintou uma chance de pegar um navio cargueiro, que transporta açúcar. Em dois dias a coisa se decide. E hoje mesmo queríamos ver o lance das empresas de aviação. Mas Danilo e Ronaldo tomaram chá de sumiço…
Ao passar a borboleta no restaurante universitário, conheci duas gatas muito lindas: a Juliana e a Maria do Horto.
Fiquei de pegar a Juliana na saída do trabalho, ela é professora estagiária do SESC. Namoramos um pouco, depois me mandei pra Biblioteca.
É um prédio grande, com uma escadaria e colunas dóricas. Os livros estão distribuídos por varias seções, em três andares, fui logo procurando pelo subsolo. Desci uma escada e fui dar numa sala de teto bem baixo. Lá dentro estão as prateleiras, com obras muito antigas. Mas o acesso estava interditado, uma cerca de fitas vermelhas impedia a passagem. E não havia nenhum funcionário ali. Resolvi dar um tempo, não apareceu ninguém. Então não titubeei e pulei a cerca. Eram várias prateleiras, separadas por um corredor muito estreito, só permitia a passagem de uma pessoa.
Peguei um livro ao acaso, era uma obra de Fabre d’Olivet, da escola hermética. Devolvi à prateleira e peguei outro: „Le secret des origines“. Abri um terceiro, era uma obra de Lenormant, também em francês. Sem dúvida, ali deviam estar os livros de que me havia falado o seu Policarpo, em Macau. Lancei mão dum quarto livro, sem perceber que um funcionário já tinha me flagrado, ele intimou:
– Esta secção não está aberta ao público, o senhor abandone imediatamente o recinto!
De susto quase deixei cair o grosso volume.
– É que não tendo encontrado ninguém aqui, resolvi dar uma olhadinha naqueles livros maravilhosos, eles me haviam sido recomendados calorosamente por uma pessoa muito sábia -, expliquei com certa solenidade. Mas o homem não me deu papo, apontou a escada e tive que tirar o time de campo.
(A Juliana é tímida, gosta de beijar, mas não me deixa pegar nos seios. Tem um sorriso meigo iluminando o rosto moreno. Ela mora em Fé-em-Deus, me convidou pra caminhar com ela até lá. A meio caminho paramos pra namorar, na praça Gonçalves Dias, havia um pôr do sol deslumbrante. Mas não me convidou pra ir na casa dela. Vou tirar uma soneca.)
Como havia sonhado em Piracuruca, na Posta Restante não havia carta para mim. Ronaldo recebeu carta da irmã. Seu irmão, que é médico psiquiatra, foi preso pela terceira vez. Aconselharam Ronaldo a continuar viajando. Mas ele esqueceu os documentos, não sabe onde, e perdeu a carteira de identidade. Logo, não existia. Por esta razão passamos na Polícia, eles fizeram um papel que garante que ele é ele mesmo, com o meu chamegão e do Danilo passado em baixo.
Num canapé da Biblioteca Pública, dormi um pouco, as pessoas ao redor me olham com singela curiosidade. E eu olho pela janela a chuva lá fora, caindo sobre a ilha de São Luís. Não tem uma ilha com o mesmo nome, em Paris? Um dia ainda vou conhecer…
Há um grande número de livros franceses aqui. Mas aqueles que eu quero estão proibidos, por trabalhos de restauração, coisa e tal. Agora vedaram a passagem já no começo da escada que desce ao subsolo.
A dona Genoveva tem poesias do Rimbaud, uma edição de 1926.
Mais, vrai, j’ai trop pleuré! Les aubes sont navrantes,
Toute lune est atroce et tout soleil amer…
Do barco embriagado o adolescente lançou seus torpedos sobre a civilização do conforto.
“A verdadeira vida está em outro lugar. Nós não estamos no mundo… A vida é a farsa que todos têm que executar… Que culpa tem a madeira, se ela acorda violino? Pois Eu é um outro… E o cérebro da pessoa de bem está recheado de trapos.“
Havia umas cadeiras de espreguiçar no pátio do Palace Hotel, que fica ao lado da Sé e é elevado e com sombra e aquela bela vista, ficamos ali olhando o céu, com um monte de gente circulando ao redor. Então lembrei do teatro de rua com o Living Theatre em Ouro Preto, e comecei a fazer perguntas e anotações sobre a vida do Danilo. E percebi que as pessoas ouviam interessadas. Me empertiguei e comecei a falar mais alto, como num interrogatório, não de um DOPS qualquer, mas com palavras do arco da velha, tipo tribunal da Santa Inquisição acusando o Giordano Bruno. E Danilo foi confessando uma história de cafageste, gigolô e contrabandista em Foz do Iguaçu. Foi gracioso ver a mudança de expressão das pessoas, que se detinham e nos olhavam com um ar preocupado. Mas ninguém disse nada, acho que nos confundiram com os atores de um filme que vai ser rodado, que estão hospedados no hotel. O gozado é que Danilo, no final, foi ficando sério e meio triste…
O sol foi avermelhando lá para os lados de Alcântara e resolvi bater uma caixa com o pessoal do mercado.
Eles empilham suas laranjas, mangas, cajus, jerimuns e sei lá o que mais, na frente de um velho trapiche. E ficam ali vendendo o dia inteiro. De noite cobrem as frutas com esteiras e um deles fica vigiando. Os outros passam a noite estendidos sobre outras esteiras, no ar livre impregnado de olores, o frio é pouco e não perturba. O que fica vigiando pode dormir na manhã seguinte.