Ontem à noite fui para a boemia – com Ronaldo e Cae, mais o Juca, namorado da Vanja. Levamos uma garrafa de pinga e a viola. Ficamos bebendo na frente do Palácio do Governo. É um prédio enorme, estilo neoclássico renascentista, se não me falha a memória de desertor da engenharia. Foi ali que nasceu esta cidade, conta Juca, com o Forte de São Luís, que os franceses construíram sobre uma falésia. De lá, fazia de cal a noite com sua brancura seráfica.
Uma silhueta negra nas ameias, com uma agulha enorme nas costas, parou e gritou impaciente pra gente ir tocar noutro lugar. Já estávamos mesmo querendo partir, na direção de uma batucada que vinha lá do outro lado da ponte. Fomos ver, era um ensaio de bumba meu boi, estavam preparando para a festa de São João.
De longe só se ouvia aquele batuque escuro na noite, mas ao chegar perto foram aparecendo também flauta, cavaquinho e violão, meio afogados pelas matracas, zabumbas, atabaques e pandeiros. Além dos músicos, havia um número bem maior de „brincantes“ mulheres, dançando e cantando.
Mulher vem pra umbigada
Mostra o teu pano bonito
Vem dá tua rodada
Pra louvá São Benedito
Os que estavam ali eram todos descendentes de escravos, com exceção do seu Procópio, com quem logo nos enturmamos. Ele é pernambucano, mas lançou âncora por estes lados. É mestre jangadeiro, nos explicou oferecendo sua pinga, depois de deixar cair umas gotas no chão, para o santo.
E não parou mais de falar, de modo que ficamos enredados em duas teias ao mesmo tempo, na brincadeira do Bumba Meu Boi e nas histórias do Mestre dos Mares.
Num arranho nem belisco
Mas canto trova divina
Que fala do Pai Francisco
E minha Mãe Catirina
Juca nos conta que o Boi das festas juninas tem vários „sotaques“ diferentes, conforme a música e as danças, mas este daqui é uma mistura, com Cacuriá, Tambor de Crioula, Lelê…
Vim tocá minha viola
Pra chamá os encantado
Na toada do amor
Sou doutô, sou diplomado
No dia 24 de junho, dia de São João Batista, o santo prefere dormir o dia inteiro, pra não ver as fogueiras na Terra e ficar com vontade de descer do céu pra festejar, dizem.
No dia de Santo Antônio as igrejas distribuem pãezinhos, mas não é pra comer, e sim para guardar como talismã, que garante a fartura para todo o ano.
São Pedro faz chover e proteje os pescadores e as viúvas. Mas no Maranhão são quatro os santos do mês de junho, conta Juca, tem mais o São Marçal.
(São festas religiosas cristãs, mas na folia quem dá o tom são os encantados africanos. Quiçá com a batuta do velho deus Pan, que se manifesta especialmente na inocência lasciva das danças. Os tambores são feitos com madeira tirada no mangue, que depois é brocada e queimada por dentro. A voz do tambor nunca se calou e garantiu a resistência espiritual necessária para suportar as torturas da escravidão. Na memória dos mais velhos há gratidão e respeito ao tambor, que não deixou a alegria sumir dos espíritos.)
Preto veio me mandô
Trazê um favo de mel
Com um ramo de fulô
Para a princesa Isabel
Seu Procópio viaja toda a costa do Brasil, nos contou quando cruzávamos a ponte de volta. Leva e traz mercadorias. É o típico lôbo do mar. Rijo, cheio de sól pelo corpo. E muito orgulhoso da sua condição de marítimo. Nos considerou como homens do ramo, estava convencido de que também éramos navegantes. Mas ele é o mestre dos mares. E um grande cantor, também. – Vocês não sabem, mas eu canto muito bem. Escutem esta música que eu fiz…
Fui vê o tambor do lelê
E fiquei lelé da cuca
Olhando as morena mexê
Dançando o Boi da Macuca
Bah, seu Procópio, vai cantar bem assim na casa do… E seguimos caminhando.