“É conveniente deixar de estar, antes de deixar de ser”. Quem disse esta frase foi o engenheiro Belmiro de Azevedo para explicar aos jornalistas a razão da sua reforma.
A ideia, exprimida neste contexto, já revela muito da personalidade deste homem. Já dera provas de ser inteligente e bom gestor . Nessa altura, manifestou que conhecia bem a natureza humana e estava lúcido. Mas a frase é muito rica, convida a pensar. Gostaria de partilhar algumas ideias por ela sugerida.
É próprio da natureza humana ser e estar em simultâneo, embora tenhamos a noção de que o “estar” está relacionado com o corpo e o “ser” com o espírito. E isto, desde o princípio da vida humana, embora de modo incipiente. No ventre materno, parece que o bebé só está, mas os seus sentidos já começam a dar-lhe as primeiras informações que o vão levar a “ser” português ou mexicano, trabalhador ou preguiçoso… O primeiro sentido é o do tato: o bebé mexe-se e leva o dedo à boca. Já nascido, além do tato vêm os sentidos do paladar, do olfato, do ouvido, da vista. Com eles, dá a conhecer que está molhado, com fome, com dores. Já comunica com os pais, e os pais são, naturalmente, os primeiros formadores do “ser” do filho. As primeiras palavras ajudá-lo-ã a ”ser” português, os primeiros minutos de espera (pelo biberão) ensiná-lo-ão a ser paciente…
Percebe-se que, para estar na sua plenitude, o homem deve “estar” e “ser” em simultâneo e em acordo, isto é, deve haver unidade de vida, viver de acordo com o que se pensa, estar atento ao lugar (ao momento da vida) em que se está. “Estar e ser” deve ser “tudo em um”. Porém, como já estamos a intuir, esta perfeição humana não é permanente no homem e está longe de ser completa. Quantas vezes nos distraímos a conduzir, a ler, a estudar…
Ao reformar-se, Belmiro de Azevedo percebeu que a sua “unidade de vida” estava a sofrer um “rasgão”. O seu corpo estava a ficar cansado e incapaz de acompanhar o seu “ser” ao qual dedicara muito do seu tempo de estudo, formação e valorização. Entendeu também que é no seio da família que o homem encontra aceitação, apoio e carinho – em criança, na doença e na velhice – momentos em que está patente a dificuldade de conseguir esta “unidade de vida”.
O bebé já está, mas falta-lhe viver muito para chegar a “ser” a pessoa que sonhou ser: lavrador, professor, casado, pai, solteiro, honesto, ladrão… O idoso vai perdendo a sua capacidade de “estar”, mas o seu “ser” cresceu muito desde o seu nascimento; tem história.
Como desejamos esconder esta falta de unidade entre o “estar” e o “ser”! Ansiamos tanto ter um corpo são em mente sã! Aspiramos à felicidade para sempre, mas sabemos que tal não é possível neste mundo. Mas é no outro.
Será ainda um mundo de passagem. Ainda “somos”, mas longe da perfeição. O nosso “ser” não foi capaz de viver na terra a perfeição do amor, esse elo de ligação entre o corpo e espírito que leva à unidade de vida. Após a morte, o corpo não “está” unido ao espírito, mas espera que o espírito se purifique até poder participar do Amor pleno e eterno.
A Felicidade perfeita e eterna chegará no fim do mundo, quando cada um tiver chegado a “ser como deve ser e estar onde deve estar”, no Céu. Ainda há quem aspire por um mundo assim e se esforce por trazer uma lufada de humanidade e retidão de vida à terra. Sejam bem-vindos.