– Como foi que a música entrou na tua vida?
Se alguém me faz esta pergunta – que eu mesmo já me fiz em diferentes ocasiões, – a memória sem muito esforço vai oferecer uma resposta cabal.
– Só pode ter sido na voz do seu Otto, nosso pai. Ele tinha um ouvido afinado e cantava – quem sabe alguma vez comigo no colo:
Noite escura, noite escura
Prenda minha foi se embora
E me deixou…
Mas depois eu aprendi a caminhar, fui abrindo melhor os olhos e os ouvidos, e o mundo foi entrando em mim, por esses e outros caminhos.
Fui aprendendo o canto do bem-te-vi, do joão-de-barro na sua casinha… A carruíra me intrigava, era o passarinho menor de todos e parecia ser o mais atrevido, não tinha medo de chegar perto e seu canto tinha um psssch que parecia estar mandando a gente calar a boca…
O primeiro sabiá que ouvi, foi no morro São João, na primeira vez que subi lá, levado pelo Roque e seu amigo Luís, que trabalhava no Café Santo Antônio, que o dono era o Amigo da Onça.
O sabiá estava cantando num galho de árvore muito alto.
Aí um deles – só pode ter sido o Luís, o Roque não… – deu um fundaço e acertou em cheio, matando o bichinho cantor…
Mas o sabiá não caiu. No ato de se contrair por causa da dor violenta, seus pezinhos se fincaram no galho da árvore. E lá ficou, com o biquinho ainda aberto do canto… (Até hoje está lá, no meu devaneio.)
O tempo foi andando e fui aprendendo a cantar canções. Essas primeiras músicas eram de um triunvirato de fontes: as de igreja por obrigação, as de carnaval por folia e as de São João por misterioso fascínio.
São João tararatãotão
Tem uma gaita tararataraita
Quando toca raratoroca
Bate nela
Todos os anjos
Tocam gaita…
Naqueles tempos o Roque era, pra minha cabeça de piá de quatro anos , o cara mais inteligente e fascinante que podia existir no mundo inteiro. A razão disso era o profundo conhecimento que ele tinha, sobre pássaros, bodoques, gaiolas, alçapões, alpistes… E peixes, caniços, linhas e anzóis. (Ele me ensinou a nadar, nas águas verdes do rio Caí.)
E ele sabia tudo sobre bicicletas. E duelava com outros bicicleteiros, na mão um sarrafo fino pra bater nas costas do adversário, girando sem parar ao redor das árvores de um pátio hoje extinto do Clube Riograndense, montado na bicicleta como o Máscara de Ferro no seu cavalo.
E aí ele começou a assobiar, e ninguém assobiava como ele, principalmente músicas de Ernesto Lecuona.
E começou a cantar, no seu quarto, no chuveiro, andando em bicicleta… Com voz de tenor de ópera.
Una furtiva lagrima Catari, Catari Tornei-me um ébrio
Negli occhi suoi spuntò… O teu desprezo é que me rouba a calma Na bebida busco esquecer
Porque tu me atormentas tanto Catari … Aquela ingrata que eu amava…
Mas nosso irmão Roque tinha também uma outra paixão que me fascinava. Ele pesquisava e criava novas bombinhas de São João. Considero que isso se deu naturalmente, pela conjunção de algumas circunstâncias. Ora, a pólvora é uma mistura de carvão, salitre e enxofre. Carvão lá em casa eu via, tinha como feijão. Já os outros dois eu não via, mas também tinha, como ele me explicou. É que o Armazém Licks se fez meio improvisado naquele espaço que era da antiga Pharmacia São João. O Roque me contou que na tarde de Natal em que entramos ali (eu tinha menos de dois anos) ele sentiu um frio subir pela coluna. Ali não havia nada, só aquele vazio sombrío e impregnado de um cheiro misterioso… Mas depois ele achou umas caixas atrás do armazém, no espaço ocupado pela velha cisterna, que era no subsolo e depois foi retirada. Essas caixas continham breu, salitre, enxofre… Por outro lado, as prateleiras do quarto de casal dos nossos pais, quando vinha São João, se enchiam de foguetes de todo tipo. E traques, rojões, trepa-moleques, busca-pés…
Então, desde o começo daquele ano, fui presenciando os experimentos do Roque, que ele fazia principalmente sobre as estacas sobreviventes da velha cerca, que ninguém pensava em consertar nem derrubar, no fundo da nossa horta. Eu ficava em transe, ouvindo a explosão e acompanhando o voo das latas… Naquele ano o Roque havia decidido fabricar a melhor bombinha de São João do mundo, uma fórmula como nunca ninguém antes tinha criado. E estava matutando um nome para o seu invento. À medida que os meses passavam e se aproximava São João, os petardos iam crescendo, em poder explosivo e efeito luminoso. E a ideia era que a explosão se desse na altura do pico da fogueira, que todo ano se fazia no Ginásio São João Batista.
Veio a noite de São João e a gente saiu de casa atrasado, porque a Mari ainda tinha umas coisas pra fazer. Eu estava muito excitado, e pedi pra ver a bombinha, que Roque tinha batizado de Escaratisbum. Ele me mostrou, era um cilindro cinzento, um pouco mais grosso que uma bomba de encher pneu de bicicleta. Aí saímos, e antes mesmo de chegar no campo de futebol do colégio já havia um cheiro de borracha queimada no ar. A fogueira crepitava e tinha vários pneus velhos empilhados em torno de uma haste central. Havia um mundo de gente, algazarra, cantorias, risadas explodindo. E o barulho ridículo de um traque ali, um foguete acolá… Mas todos vão cair de costas, quando o Roque riscar o Escaratisbum, pensei.
Aí me mandaram sentar com a Mari, num canto afastado da fogueira, ao lado de um cinamomo. E lá fiquei esperando ansioso. E peguei no sono. Quando me sacudiram para acordar, a fogueira estava minguando, as pessoas estavam indo embora… Não pude ver nem ouvir a melhor bombinha do mundo …