Guarda o celular! E fecha a matraca! Foi o que escutei, da calçada, ao passar debaixo da janela de uma escola. As frases, pronunciadas com indisfarçável irritação, denunciavam a dificuldade em controlar adolescentes. Impossível não lembrar dos bancos escolares maristas. Nas manhãs de qualquer estação rezávamos, olhos postos no crucifixo existente em cada sala do Ginásio São João Batista. A disciplina era um dos componentes da nossa formação, que acumpliciava o empenho de cada família em fazer de seus filhos pessoas decentes.
Usávamos calças de brim coringa, cujos joelhos desgastavam-se precocemente por conta dos folguedos, como as bolinhas de gude. Jogávamos em qualquer cancha, fosse na pedra, fosse em terrões. Antes de transformar tais calças em bermudas, ou panos de chão, as mães pespegavam remendos de couro nos joelhos, o que estendia sua vida útil.
No Colégio Militar de Porto Alegre nos erguíamos quando o professor entrava na sala e só sentávamos com a aquiescência do mesmo. Fosse um educador excepcional ou uma mediocridade, um mestre que merecesse admiração ou fosse adjetivado de forma pejorativa, na miúda, pelas arcadas, respeitava-se a liturgia do cargo.
No tempo da escola portoalegrense, algumas vezes estive na residência de colegas com o propósito de cumprir trabalhos em grupo. Para um interno era sempre bom haurir o ambiente de uma família e libar coisas simples à mesa, com o esmero que normalmente falta num rancho castrense. Numa destas oportunidades, mexendo com produtos químicos, acidentalmente o anfitrião borrifou amoníaco em um de meus olhos. Por horas senti o incômodo.
No apartamento de outro colega, filho de São Gabriel, fizemos de tudo, menos estudar. Era um sujeito divertido. Provavelmente cumprimos a tarefa de maneira medíocre, mas jogamos muita bola no playground do prédio antes de um bom café da tarde. Médico de destaque, soube que faleceu recentemente. Não foi o primeiro de nossa turma a tombar, como sinal de que a areia de nossa ampulheta já predomina no fundo. Não o via há mais de quarenta anos e pela foto que encontrei na rede mundial acho que não o reconheceria na rua. A menos que ele desse uma risada, que traria à tona do tempo sua bonomia, sua irreverência.
Dias depois da triste notícia, pulei cedo da cama e, com um sol meio sonolento, chapinhei na beira do mar, caminhando devagar por conta de um joelho em conserto. Ninguém naquele trecho da praia, nem mesmo pescadores. Olhando para o chão à procura de conchas, para o mar à busca de inspiração e para o alto em forma de agradecimento, fui vencendo a distância observando pássaros em sua refeição matinal. Cada onda é uma chance de alimento: “Não se preocupam com o alimento, não precisam de semear, nem de colher ou de armazenar comida, pois o vosso Pai celestial é quem os sustenta. E, para ele, vocês têm muito mais valor do que os passarinhos. As vossas preocupações poderão porventura acrescentar um só momento ao tempo da vossa vida?”. Convenhamos, tais palavras são um pontapé nas nossas dissipações.
No final do trecho cruzei as pedras e pisei em areia alisada pelo vento. Minhas pegadas quebraram a solitude da cena. Na barra do rio mais de vinte pescadores, entre diletantes e profissionais, lançavam suas redes para capturar sardinhas, robalos e tainhas. Não fosse o vento frio, seria muito bom sentar e apreciar aquela faina, cuja coreografia é pura poesia.
Dos bancos escolares a esta parte o mundo sofreu profundas transformações. Algo do idealismo que nos animava na juventude esboroou. Por isto a natureza recruta nova gente para reencetar a caminhada. Desprovidos ainda de sabedoria e ignorando os futuros cansaços que encherão suas mochilas, os mais jovens sempre têm a sensação de que a vida, pelo menos a vida inteligente, começou com eles. E que não terminará.
Ao voltar sobre os meus passos, percebi que minhas pegadas na areia fina já haviam sido cobertas. Como se jamais houvessem existido. Se desejamos deixar algum legado, deve ser de pedra. Se a areia das horas sepulta até as rochas, o que dizer das pegadas? Que Deus acolha o colega que se foi. Quem sabe jogaremos no playground celeste.