Vi, num dos últimos números do nosso jornal, a notícia de um Festival de Sopas, realizado na Torreira. Em boa hora se promove a sopa, um alimento de alto valor nutritivo, pois, quando cozemos os legumes, uma grande parte dos seus nutrientes fica na água. Se deitarmos a água fora, lá se vai o melhor. Assim as sopas podem e devem constituir a base de uma alimentação saudável. O autor da notícia destacava a nossa portuguesíssima canja. Portuguesíssima?! Nem tanto. Tal como o nome dá a entender, a sua origem é chinesa.
Foi o médico português, instalado em Goa, na primeira metade do séc. XVI, Garcia de Horta, que deu a conhecer essa sopa de galinha. Doente, provavelmente com gripe, a escrava chinesa que o servia preparou-lhe uma sopa com galinha, arroz e legumes. Lembro-me de há uns anos ler uma notícia de que nos Estados Unidos se tinha descoberto que o caldo de galinha com legumes era ótimo para curar a gripe. Já há quanto tempo nós o sabíamos! Ainda hoje eu faço a canja segundo a receita da minha avó: galinha, claro, alho, cebola, nabo, couve coração de boi e, em vez do arroz à moda chinesa, massa pevide ou pontinha, como agora se diz.
Acrescento ultimamente, um toque pessoal de umas gotas de limão no prato, ou por outra, na tigela, também chamada malga, que é donde gosto de comer a sopa. Atenua-lhe um pouco o sabor da gordura e acrescenta-lhe vitamina C. Esta é a canja autêntica. O caldo ou caldinho de galinha é apenas a água da galinha cozida. Já agora, falemos um pouco de Garcia de Horta, homenageado como patrono de uma Escola Secundária no Porto e de um hospital em Almada.
Foi médico de D. João III, amigo do matemático Pedro Nunes e de Luís de Camões. Nasceu em Castelo de Vide, provavelmente em 1500 ou 1501. Filho de judeus fugidos da perseguição movida em Espanha pelos Reis Católicos, ele próprio não se sentindo muito seguro em Portugal, partiu para a Índia, onde conheceu Camões. Estudou Filosofia da Natureza, Medicina e Botânica em Salamanca e Alcalá de Henares, em Espanha.
Regressado a Portugal, exerceu medicina em Castelo de Vide e Lisboa, ingressando em 1530 como professor de Filosofia na Universidade de Coimbra. Não só temendo a Inquisição pela sua origem judaica, mas também pelo desejo de conhecer o mundo, foi então para a Índia, instalando-se em Goa, tornando-se íntimo e médico do vice-rei. Mercê do seu convívio com médicos árabes e hindus, dedicou-se ao estudo das ervas medicinais, também chamadas ervas simples, ou apenas simples, publicando o resultado das suas investigações na obra Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia (1563), obra mista de medicina, farmacologia, filosofia da natureza, que revolucionava os conhecimentos da velha Europa, por se basear no conhecimento experimental e em valores científico-naturais. Ainda assim, o livro foi autorizado pela Inquisição, que, entretanto, tinha sido instalada em Goa. A obra conheceu inúmeras edições, traduções e adaptações ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, constituindo um dos maiores contributos de Portugal para o espírito científico e experimental do Renascimento.