Skip to content

Veneno perdido

  • Julho 28, 2022
  • Cultura
  • José Rogério Licks

Ainda não tinha conhecido uma mulher tão lida (e tão generosa!) como a Genoveva.

Conversando com ela, perguntei: – Quem encarna melhor Rimbaud, um beatnik ou um hippie?

– Os beatniks são intelectuais, eles saem pelas estradas com uma segunda intenção, a de colher material para algum livro -, ela explicou. Rimbaud foi um intelectual durante uns poucos anos, quando escreveu toda a poesia que se conhece dele, na época da Comuna de Paris, que ele também vivenciou. Mas chegando aos 20 anos ele se desligou da literatura.      Os hippies encarnam melhor esse seu segundo momento, do andar por andar, sem motivação intelectual.   Rimbaud trouxe ideias novas, como a expansão da consciência. E levar a poesia para a vida…

Os beatniks adotaram isso como princípios sagrados.

Os hippies são mais numerosos e mais ingênuos. Também seguem a estrela do Rimbaud, mas sem o saber…

Depois, com o violão ao lado, me debrucei mais longamente sobre o livro que a dona Genoveva me emprestou. Quem sabe pesco nele a inspiração para uma música nova, pensei. Qual o quê! Essa poesia parece ser inimiga de todo romantismo, rejeita qualquer sentimentalismo subjetivo. Mas vamos traduzir um pouco.

                                                               O lobo uivava entre as folhas
                                                               Cuspindo as mais formosas plumas
                                                               Da sua comida de aves.
                                                               Como ele eu me consumo…

Numa carta a Paul Demeny (1871) A. R. escreve sobre algumas de suas ideias centrais, como o seu método de conseguir a iluminação e se tornar um vidente, pelo desregramento dos sentidos. E seu entendimento sobre o Eu:

„Pois Eu é um Outro. O metal não tem culpa, se ele acorda como trompete. Para mim a coisa é muito clara: eu assisto a eclosão do meu pensamento: olho ele, escuto ele: lanço um primeiro golpe de arco: a sinfonia começa seu remoinho nas profundezas, ou vem de um salto sobre o cenário.

Se os velhos imbecís não tivessem encontrado do Eu somente o significado falso, não precisaríamos varrer os milhões de esqueletos que… O primeiro estudo de quem quer ser poeta é o conhecimento de si mesmo, inteiro;  procurar sua alma, a inspecionar, a seduzir, a descobrir… Esses poetas virão! E se quebrará a longa servidão da mulher, quando ela viverá por ela e para ela… ela será poeta, ela também! A mulher encontrará no desconhecido… coisas estranhas, insondáveis, repulsivas, deliciosas; nós as aceitaremos, nós as compreenderemos…“

Mas ele também escreve:

„ les colères folles me poussent vers la bataille de Paris – où tant de travailleurs meurent pourtant encore tandis que je vous écris!“ (… a minha raiva furiosa me empurra para a batalha de Paris – onde tantos trabalhadores morrem, enquanto eu lhe escrevo!)

A vida é como um rio, e nosso barco nos leva sempre ao ignorado. O que eu mais queria aqui em São Luís era ter acesso aos livros misteriosos, que o João Policarpo me indicou em Macau. Até agora não consegui. Em troca me apareceu o Rimbaud pela frente. (Começo a suspeitar que dá no mesmo, se bobear o Policarpo é um agente camuflado do Outro…)

                                                                O rio de Cassis corre ignorado
                                                                Através de vales estranhos
                                                                A voz de cem corvos o acompanha
                                                                (Verdadeira e boa voz de anjos)
                                                                Com os amplos movimentos dos pinhais
                                                                Quando muitos ventos se precipitam…

„Uma temporada no inferno“ começa assim:

Naqueles tempos, se recordo bem, minha vida era um festim, em que se abriam todos os corações, em que corriam todos os vinhos. Uma noite, eu sentei a Beleza sobre meus joelhos.                             

– E achei ela amarga. – E a insultei.

Me armei contra a justiça…

Rimbaud é um filho de Pan, um adorador da natureza.

                       Que por ti de bom grado, oh Natureza!                           (Para lá, nada de esperança,
                       – Ah, menos só e menos nulo! – eu morreria.                  Nenhuma claridade.
                       … Quero que as estações me consumam.                         Ciência com paciência,
                       A ti, Natureza, eu me rendo.                                               O suplício é seguro…)
                       E minha fome, e toda minha sede.
                       Nada de nada me ilude…                                     

 – Jim Morrisson pegou seu fogo na tocha que Rimbaud acendeu, como Kerouac e muitos outros –, opina a Genoveva. Mas eu prefiro ter cuidado com ele, o veneno pode ser forte demais.

                                                                Na borda de uma cortina azul, fincado
                                                                Brilha um alfinete com cabeça de ouro
                                                                Como um grande inseto adormecido.
                                                                Ponta em fino veneno molhada,
                                                                Eu te pego, semente preparada
                                                                Para a hora dos desejos de morrer…

Categorias

  • Conexão | Brasil x Portugal
  • Cultura
  • História
  • Política
  • Religião
  • Social

Colunistas

A.Manuel dos Santos

Abigail Vilanova

Adilson Constâncio

Adriano Fiaschi

Agostinho dos Santos

Alexandra Sousa Duarte

Alexandre Esteves

Ana Esteves

Ana Maria Figueiredo

Ana Tápia

Artur Pereira dos Santos

Augusto Licks

Cecília Rezende

Cláudia Neves

Conceição Amaral de Castro Ramos

Conceição Castro Ramos

Conceição Gigante

Cristina Berrucho

Cristina Viana

Editoria

Editoria GPC

Emanuel do Carmo Oliveira

Enrique Villanueva

Ernesto Lauer

Fátima Fonseca

Flora Costa

Helena Atalaia

Isabel Alexandre

Isabel Carmo Pedro

Isabel Maria Vasco Costa

João Baptista Teixeira

João Marcelino

José Maria C. da Silva...

José Rogério Licks

Julie Machado

Luís Lynce de Faria

Luísa Loureiro

Manuel Matias

Manuela Figueiredo Martins

Maria Amália Abreu Rocha

Maria Caetano Conceição

Maria de Oliveira Esteves

Maria Guimarães

Maria Helena Guerra Pratas

Maria Helena Paes

Maria Romano

Maria Susana Mexia

Maria Teresa Conceição

Mariano Romeiro

Michele Bonheur

Miguel Ataíde

Notícias

Olavo de Carvalho

Padre Aires Gameiro

Padre Paulo Ricardo

Pedro Vaz Patto

Rita Gonçalves

Rosa Ventura

Rosário Martins

Rosarita dos Santos

Sérgio Alves de Oliveira

Sergio Manzione

Sofia Guedes e Graça Varão

Suzana Maria de Jesus

Vânia Figueiredo

Vera Luza

Verónica Teodósio

Virgínia Magriço

Grupo Progresso de Comunicação | Todos os direitos reservados

Desenvolvido por I9