Ainda não tinha conhecido uma mulher tão lida (e tão generosa!) como a Genoveva.
Conversando com ela, perguntei: – Quem encarna melhor Rimbaud, um beatnik ou um hippie?
– Os beatniks são intelectuais, eles saem pelas estradas com uma segunda intenção, a de colher material para algum livro -, ela explicou. Rimbaud foi um intelectual durante uns poucos anos, quando escreveu toda a poesia que se conhece dele, na época da Comuna de Paris, que ele também vivenciou. Mas chegando aos 20 anos ele se desligou da literatura. Os hippies encarnam melhor esse seu segundo momento, do andar por andar, sem motivação intelectual. Rimbaud trouxe ideias novas, como a expansão da consciência. E levar a poesia para a vida…
Os beatniks adotaram isso como princípios sagrados.
Os hippies são mais numerosos e mais ingênuos. Também seguem a estrela do Rimbaud, mas sem o saber…
Depois, com o violão ao lado, me debrucei mais longamente sobre o livro que a dona Genoveva me emprestou. Quem sabe pesco nele a inspiração para uma música nova, pensei. Qual o quê! Essa poesia parece ser inimiga de todo romantismo, rejeita qualquer sentimentalismo subjetivo. Mas vamos traduzir um pouco.
O lobo uivava entre as folhas
Cuspindo as mais formosas plumas
Da sua comida de aves.
Como ele eu me consumo…
Numa carta a Paul Demeny (1871) A. R. escreve sobre algumas de suas ideias centrais, como o seu método de conseguir a iluminação e se tornar um vidente, pelo desregramento dos sentidos. E seu entendimento sobre o Eu:
„Pois Eu é um Outro. O metal não tem culpa, se ele acorda como trompete. Para mim a coisa é muito clara: eu assisto a eclosão do meu pensamento: olho ele, escuto ele: lanço um primeiro golpe de arco: a sinfonia começa seu remoinho nas profundezas, ou vem de um salto sobre o cenário.
Se os velhos imbecís não tivessem encontrado do Eu somente o significado falso, não precisaríamos varrer os milhões de esqueletos que… O primeiro estudo de quem quer ser poeta é o conhecimento de si mesmo, inteiro; procurar sua alma, a inspecionar, a seduzir, a descobrir… Esses poetas virão! E se quebrará a longa servidão da mulher, quando ela viverá por ela e para ela… ela será poeta, ela também! A mulher encontrará no desconhecido… coisas estranhas, insondáveis, repulsivas, deliciosas; nós as aceitaremos, nós as compreenderemos…“
Mas ele também escreve:
„ les colères folles me poussent vers la bataille de Paris – où tant de travailleurs meurent pourtant encore tandis que je vous écris!“ (… a minha raiva furiosa me empurra para a batalha de Paris – onde tantos trabalhadores morrem, enquanto eu lhe escrevo!)
A vida é como um rio, e nosso barco nos leva sempre ao ignorado. O que eu mais queria aqui em São Luís era ter acesso aos livros misteriosos, que o João Policarpo me indicou em Macau. Até agora não consegui. Em troca me apareceu o Rimbaud pela frente. (Começo a suspeitar que dá no mesmo, se bobear o Policarpo é um agente camuflado do Outro…)
O rio de Cassis corre ignorado
Através de vales estranhos
A voz de cem corvos o acompanha
(Verdadeira e boa voz de anjos)
Com os amplos movimentos dos pinhais
Quando muitos ventos se precipitam…
„Uma temporada no inferno“ começa assim:
Naqueles tempos, se recordo bem, minha vida era um festim, em que se abriam todos os corações, em que corriam todos os vinhos. Uma noite, eu sentei a Beleza sobre meus joelhos.
– E achei ela amarga. – E a insultei.
Me armei contra a justiça…
Rimbaud é um filho de Pan, um adorador da natureza.
Que por ti de bom grado, oh Natureza! (Para lá, nada de esperança,
– Ah, menos só e menos nulo! – eu morreria. Nenhuma claridade.
… Quero que as estações me consumam. Ciência com paciência,
A ti, Natureza, eu me rendo. O suplício é seguro…)
E minha fome, e toda minha sede.
Nada de nada me ilude…
– Jim Morrisson pegou seu fogo na tocha que Rimbaud acendeu, como Kerouac e muitos outros –, opina a Genoveva. Mas eu prefiro ter cuidado com ele, o veneno pode ser forte demais.
Na borda de uma cortina azul, fincado
Brilha um alfinete com cabeça de ouro
Como um grande inseto adormecido.
Ponta em fino veneno molhada,
Eu te pego, semente preparada
Para a hora dos desejos de morrer…