Há coisa de uma semana fui à praia do Olho d’Água, com Juliana. Caminhamos uns 40 minutos de São Luís até lá. Tem outra bem maior, perto do centro da cidade, mas é chata, vai muita gente. Essa que fomos é deserta, tem água e areias límpidas, e está rodeada de mata virgem, é capaz até de aparecer uma onça… Mas quem apareceu foi a Maria do Horto, que conheci no restaurante universitário. E ela contou coisas instigantes, sobre a Fonte do Ribeirão e a Biblioteca Pública.
Há um ano atrás Maria entrou na Fonte do Ribeirão com dois colegas do curso de História (ela também faz Teatro), para uma pesquisa de campo muito especial. Eles queriam comprovar o fundo de verdade das lendas que giram em torno das convulsões e revoltas que se deram na região, ao longo do período colonial e mesmo depois da independência.
Segundo a tradição popular, a Fonte do Ribeirão é um ponto de confluência de vários canais e passagens subterrâneas, suas galerias comunicam com outras galerias e caminhos secretos que foram surgindo para uso dos combatentes, nos enfrentamentos em que as tropas portuguesas combateram e venceram os franceses, no começo do século XVII. E nas lutas contra os invasores holandeses e nas revoltas que vieram depois. Em 1612 os franceses fundaram com os índios tupinambás a cidade de São Luís, após a primeira missa rezada por frades capuchinhos. Mas antes disso, eles já haviam estado na região e travado amizade com os indígenas, que chamavam eles de papagaios amarelos, porque eram loiros e muito tagarelas. Um dos pontos mais importantes de encontro e confraternização dessa aliança, que deu origem à França Equinocial, era um enorme descampado, no meio do qual hoje se encontra a Biblioteca, na praça Deodoro. Esse lugar, que muita gente da antiga chama de „Campo de Ourique“, foi palco de muitas batalhas, viu o enforcamento do líder da Revolta do Bequimão, abrigou a Pedra da Memória e ali se construiu um quartel militar, que mais tarde foi demolido e em seu lugar se construiu a Biblioteca Pública do Estado. No dito quartel havia uma cisterna ligada a um túnel subterrâneo.
Com o tempo, ficaram abandonados e esquecidos tais caminhos secretos, que também eram utilizados pelos frades, entre as igrejas de São João Batista, do Carmo e de São Pantaleão. Acontece que na tal pesquisa de campo eles passaram para um túnel adjacente, que começa debaixo da ladeira da rua das Barrocas e corre mais ou menos paralelo à rua dos Afogados, acompanhando um filete d’água que desce de uma vertente nas bordas do Campo de Ourique. Esse túnel chega até a vertente, e ali conecta com outro em diagonal para a direita, que conduz à grande cisterna da tal caserna militar. O túnel possui uma abertura dotada de uma tampa de madeira, que eles levantaram, entraram e descobriram que era no porão da Biblioteca Pública…
– Quê!?! Vocês foram até o subsolo da Biblioteca? – exclamei chocado.
– Eu não, eu caí fora quando chegamos no poço da galeria, que conecta com o túnel – explicou Maria. Me deu medo mergulhar ali… Mas eles continuaram e depois me contaram tudo com detalhes.
– Mas, venha cá, você pode me apresentar aos seus amigos, pra levar um papo com eles?
(Aqui Maria fechou o semblante e virou o rosto para o lado.)
– Não, eles foram presos como subversivos e estão desaparecidos – ela falou.
De volta do Olho d’água, o veneno da tentação começou a me espicaçar sem pausa. Quem sabe a gente excursiona pelo inconsciente desta cidade, pelo contra-céu de São Luís, falei com meus botões. Pode ser um atalho para chegar nos livros do Policarpo… Dois dias depois me enfiei na Fonte, munido de uma lanterna e algumas ferramentas que o Cae me conseguiu. (Cheguei a convidar o pessoal pra ir junto, e o Danilo se interessou, mas depois desistiu.) Um dia antes disso, tive uma conversa com a Genoveva.
A gente estava comentando um poema do Rimbaud, e rolou um papo sobre a relação da música com a natureza, e sobre as fontes subterrâneas e inconscientes da criação artística.
– Vou lhe contar uma história interessante, dos tempos antigos – começou dona Genoveva, que é psicanalista, eu não sabia. Ali pelo fim da Antiguidade, pouco antes da aparição do Mestre da Galiléia, um barqueiro no mar Mediterrâneo foi incumbido de espalhar uma notícia importante. Ele então se aproximou da terra e gritou:
– O grande Pã morreu!
Imediatamente se ouviram lamentos na praia, aos que foram se juntando outros lamentos vindos de todas partes, que se fizeram cada vez mais fortes, até se tornarem insuportáveis. (Essa lenda dos povos mediterrâneos foi registrada por um historiador antigo, o nome ela citou, mas agora não me vem à memória.)
– O quê? Você, um músico, não sabe nada sobre Pã? – ela alfinetou.
(Em algum lugar li que Tupã é uma variação de Pã, mas nunca aprofundei no assunto.)
– Homero dedicou um hino órfico a Agamenon, o rei mais poderoso da antiga Grécia, no qual descreve a Pã e relata seu nascimento – continuou Genoveva.
Maravilhoso de se ver, pés caprinos, duplo corno,
De riso doce e amante do som…
A mãe de Pã era humana, filha de um pastor, e o abandonou ao nascer, com medo do seu aspecto. Mas o pai era Hermes, o mensageiro dos deuses, e com ele nos braços foi sentar junto a Zeus, e mostrar seu filho. Todos os deuses se encantaram com a criança, Dionísio mais que todos. (É daí que vem o nome, que em grego significa todos.)
Acontece que, com o desenvolvimento da psicanálise, hoje se sabe que as histórias da Grécia antiga encerram profundos ensinamentos sobre os caminhos subterrâneos da mente humana. Pã morreu porque a cultura que ele simboliza cedeu lugar a uma outra cultura, disseminada pelas religiões abraâmicas. E nesse processo histórico, a natureza se viu privada da sua voz criativa, e foi deixando de ser uma força viva e independente. A alma da natureza se perdeu, e nós perdemos a conexão física com ela, que já não nos fala – ou melhor, nós perdemos a capacidade de ouvi-la. Todas as coisas, lugares e animais perderam sua maravilha e seu caráter divino. As pedras sagradas se tornaram só pedras, as águas só águas para tomar ou vender ou sujar, as árvores também, apenas sobreviveu a divindade do pinheirinho, árvore sagrada das tribos germânicas, das frias florestas nórdicas, que foi adaptada para o nascimento do Menino Deus, na Palestina…
– Mas Pã, o dançarino sensual e músico de doces melodias, intermediário entre o animal e o humano, na evolução das espécies que o estudante de teologia Darwin pesquisou… Pã não morreu, ele se refugiou nos subterrâneos da nossa psique. E de vez em quando ele se mostra, em sonhos e pesadelos, em êxtases e paranóias, em depressões e ataques de pânico – finalizou Genoveva.