Cada um de nós, apesar de sermos uma só pessoa, carregamos algumas outras conosco. E não, não estamos loucos, estamos, isso sim, explorando um pouco de nossas possibilidades criativas. Nós temos vários escaninhos em nossas mentes e em nossos pensamentos; alguns nem chegam à superfície, coitados, enquanto outros conseguem manifestar-se alegremente por estarem, enfim, apresentando-se no chamado “mundo real”: “Ah, finalmente!…” Mas não se preocupem, não procederemos a nenhuma análise ao vivo, frente aos leitores.
Nosso texto de hoje dedica-se a descobrir, modestamente e na medida do possível, os pequenos compartimentos da genialidade do escritor português Fernando Pessoa. O autor nasce em 1888, em Lisboa, e morre em 1935, na mesma cidade; ele foi essencialmente um poeta, mas foi igualmente filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor, publicitário, astrólogo, inventor, empresário, correspondente comercial, crítico literário e comentarista político lusitano, e sendo considerado como o mais universal poeta português. Por ter sido educado na África do Sul, numa escola católica irlandesa de Durban, chegou a ter mais familiaridade com o idioma inglês do que com o português ao escrever seus primeiros poemas naquele idioma; por isso deve-se o comentário do professor e crítico literário americano, Harold Bloom, para quem Fernando Pessoa se situa entre os melhores escritores da civilização ocidental, não apenas da literatura portuguesa mas também da inglesa.
Efetivamente, das quatro obras que Pessoa publicou em vida, três são em inglês – “35 Sonnets”, em 1918, “Antinous”, também em 1918, e as coletâneas “English Poems” nºs I, II e III, em 1921; somente uma obra sua em português foi publicada ainda em vida, intitulada “Mensagem”, em 1934; além disso, nosso autor traduziu para o português várias obras em língua inglesa, como algumas de Shakespeare e outras de Edgar Allan Poe, e traduziu autores portugueses para o inglês e o francês. Como poeta, escreveu sob diversas personalidades – a que ele próprio chamou heterônimos – como Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, entre outros – constituindo estes dois últimos o maior objeto dos estudos sobre sua obra e sua vida; comentaristas especializados afirmam que alguns poetas podem ter inventado “máscaras pelas quais falam ocasionalmente”, mas que só Fernando Pessoa “inventou poetas inteiros”.
O termo heterônimo significa “ o que difere do nome”, criando, assim, um autor imaginário com um nome igualmente imaginário e o qual se opõe às ideias e à escrita do poeta Fernando Pessoa. Seus heterônimos não só distanciam-se de seus textos, como usualmente discordam de seus pensamentos; à diferença do pseudônimo, quando um autor escreve sob um outro nome, um heterônimo designa alguém com qualidades e tendências marcadamente diferentes daquelas de seu criador inicial. É interessante destacar-se um quarto heterónimo de grande importância na obra de Pessoa: este é Bernardo Soares, autor do “Livro do Desassossego”, importante obra literária do século XX. Bernardo é considerado um semi-heterônimo por ter muitas semelhanças com Fernando Pessoa e não possuir uma personalidade sua propriamente característica, ao contrário dos três primeiros citados, que possuem até mesmo data de nascimento e morte (à exceção de Ricardo Reis, que não possui data de falecimento).
Diversos estudiosos procuraram enumerar os heterônimos de Pessoa; em 1996, alguns professores identificam 18 nomes e outros, mais adiante e até nossos dias, chegam a número bem mais amplo. De qualquer forma, através dos heterónimos, Pessoa conduz uma profunda reflexão sobre a relação entre verdade, existência e identidade. Este último fator possui grande notabilidade no famoso “mistério” do poeta, o qual nos afirma que “Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, / que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, / ou quando menos, os seus companheiros de espírito?”; este texto encontra-se no “Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares.
Cada heterônimo é adepto de um tipo de vida e de pensamento diferentes dos outros, como Ricardo Reis, o qual esposa ideais filosóficos greco-latinos, sobretudo o epicurismo e o estoicismo; Ricardo Reis cria uma poesia em que a harmonia, a clareza, as boas formas de viver, o prazer, a serenidade e o equilíbrio são os principais temas. Trazemos excertos de uma de suas “Odes”, intitulada “Segue o Teu Destino”: “Segue o teu destino, / Rega as tuas plantas, / Ama as tuas rosas. / O resto é a sombra / De árvores alheias. (…) A realidade / Sempre é mais ou menos / Do que nos queremos. (…) / Mas serenamente / Imita o Olimpo / No teu coração. / Os deuses são deuses / Porque não se pensam.” A seguir, destacamos uma das maiores realizações do heterônimo Álvaro de Campos, intitulada “Tabacaria”; trata-se de um poema longo e complexo, constituído por 167 versos livres; foi escrito em 1928 e publicado em 1933, na Revista Presença, e a obra é das criações poéticas mais famosas de Fernando Pessoa.
Os versos são um registro do tempo em que viveu, da modernidade veloz e do sentimento de incerteza do sujeito que se sente perdido diante de tantas mudanças; a sensação de vazio, de solidão e de incompreensão são as linhas norteadoras do poema; pode-se afirmar que o peso da realidade em “A Tabacaria” é esmagador. Nessa “Tabacaria”, vidas inteiras são vistas em alguns flashes de observação cotidiana da rua e da loja, e uma verdadeira contraposição da realidade pessoal e íntima afronta-se com a sobrecarga de uma realidade brutal, o que conduz o autor a retornar ao tema do cansaço, da inquietação diante do incompreensível, provocando um niilismo, um sentimento de revolta, um inconformismo e uma desumanização absolutos.
Trechos desse poema: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. / Janelas do meu quarto, / Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é / (E se soubessem quem é, o que saberiam?), (…) / Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, / Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, / Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.” Avançamos, agora, a um trecho poético do heterônimo Alberto Caeiro, em “Poemas Inconjuntos”, publicado em 1925, na Athena Revista de Arte: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, / Não há nada mais simples / Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. / Entre uma e outra todos os dias são meus.” Quanto ao autor, sabemos que Alberto Caeiro era considerado por Fernando Pessoa como o Mestre dos heterônimos Álvaro de Campos e Ricardo Reis e também dele mesmo, o próprio Fernando Pessoa, apesar de Caeiro ter apenas concluído a instrução primária. Foi um poeta ligado à natureza, que despreza e repreende qualquer tipo de pensamento filosófico, afirmando que pensar obstrui a visão. Afirma que, ao pensar, entramos num mundo complexo e problemático onde tudo é incerto e obscuro.
À superfície é fácil reconhecê-lo pela sua objetividade visual, pelo verso livre e pela linguagem simples e familiar. É um poeta de completa simplicidade, e considera que a sensação é a única realidade. Enfim, multiplicando-se a ponto de dialogar e mesmo de contrapor-se as suas criaturas, Fernando Pessoa só enriquece sua obra e a nós mesmos; se prestamos bem atenção a qualquer um de seus poemas ou de algum de seus heterônimos, ganhamos em profundidade de pensamento, alargamos nossa visão da realidade e, principalmente, descobrimos o irreal que habita a nosso lado; nós podemos ser múltiplos: se temos a possibilidade de exercitarmos, nós temos da mesma forma, a capacidade de ver e de viver a vida mais ampla. A existência do poeta foi dedicada a criar e, de tanto criar, criou outras vidas através de seus heterônimos, sua atividade foi uma constante divulgação da língua portuguesa e, nas próprias palavras de Bernardo Soares, “a minha pátria é a língua portuguesa”.
Este é o legado do poeta: Pessoa diz, no poema “Navegar é Preciso”, que “viver não é necessário; o que é necessário é criar”; ou dizemos nós que é preciso gerar um mundo mais vasto de solidariedade e que apresente grande variedade de opiniões e de realizações boas para todas as pessoas.