Me mudei para São Paulo na década de oitenta. Era ainda uma cidade agradável de se viver, com trânsito intenso, mas suportável. Permaneci quase um mês no apartamento de um primo e depois me instalei por conta própria, praticamente no mesmo bairro. A mudança de ares era um desafio em si mesma e felizmente logo me ambientei. As pessoas eram menos radicais do que as de meu estado de origem. Os gaúchos gozavam de alguma admiração, por conta de nossa desusada franqueza e prosa, contrabalançando a bronca atávica que os paulistas tinham conosco por conta da Revolução Constitucionalista, quando o Rio Grande traiu São Paulo.
Estado que coloca o trabalho no altar, desde logo apreciei a dinâmica paulista, cristalizada na música “Amanhecendo”, de Billy Blanco: “Sempre ligeiro na rua / Como quem sabe o que quer / Vai o paulista na sua / Para o que der e vier”. Saía do chuveiro sob o refrão “Vam bora / Olha a hora / Vam bora, vam bora”, que identificava uma emissora de rádio nas primeiras horas da manhã.
Uma coisa, entretanto, mais que intrigar, me incomodava: a fidelidade a certos políticos caricatos, que haviam protagonizado escândalos ou se caracterizavam pela suspeita de corrupção. A celebridade de que Jânio Quadros gozava na Mooca ou na Vila Maria, depois de tantos anos de sua renúncia, que aliás nos jogou num precipício, ou a leniente expressão “rouba, mas faz”, dedicada a Adhemar de Barros e mais tarde a Paulo Maluf, eram a tradução de um povo distante da política e dos desígnios dela em sua vida. Simplificando, talvez o adjetivo alienados não fosse o mais adequado. Indiferentes, é o que eram.
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Num jantar entre amigos, dias atrás, depois de muitas risadas e algumas dissipações, alguém perguntou por que raios os intelectuais parecem ter uma certa preferência pelas ideias de esquerda. De pronto lembrei que Bernard Shaw deu sua versão, mas apelar para ela é uma tentação à qual não cederei, porque o chiste tem o mesmo efeito das balas de festim.
No século XIX, com a modernização dos meios de produção, pequenos empreendedores e operários se viram a braços com grandes dificuldades. Afinal de contas o capitalismo, a despeito do seu discurso modernizado, raramente tem efetivo compromisso com o social.
Em 1834, alemães exilados em Paris e Londres criaram a “Liga dos Párias”, integrada por várias categorias, como ferreiros, alfaiates, carpinteiros e sapateiros. Uma dissidência geraria a “Liga dos Justos”, que tinha já um espírito revolucionário. Seu lema era “Todos os homens são irmãos”. Princípio cristão por excelência, está consagrado no “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, mas o pensamento sedicioso – ainda que justas as reivindicações,- obviamente passa por cima da similitude e finge desconhecê-la. Marx filiou-se em 1847.
O apelo à fraternidade tem o condão de seduzir as almas, de inebriá-las, atribuindo a todos os demais, que não rezarem pela cartilha, um coração de pedra. Cria-se uma fronteira, clara como um rio: em margens opostas posicionam-se os justos e os compassivos, confrontados com os cruéis, os egoístas e seus cúmplices. Estes serão achincalhados por palavras de ordem e ameaçados por um ódio crescente. Cai por terra, na largada, o “Todos os homens são irmãos”: alguns são mais irmãos que os outros… A cizânia é, portanto, uma marca registrada. Nem poderia ser diferente nos movimentos que se pretendem revolucionários.
Quando alguns integrantes da VAR-Palmares assaltaram um dos cofres em que Adhemar de Barros, dizem, escondia parte de sua mal havida fortuna, o populacho aplicou outro aforismo deplorável que escutei pela vez primeira em São Paulo: “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”. Para os interessados neste tema espinhoso da guerrilha, sugiro o texto https://veja.abril.com.br/coluna/augusto-nunes/o-assalto-que-dilma-ajudou-a-planejar/ .
Com alguma frequência as pessoas associam a fé com ignorância, superstição ou fraqueza. Alguns manifestam isto com toda a clareza: “Um sujeito não pode ser cristão e inteligente ao mesmo tempo!”. Devo revelar que já escutei isto de pessoas cuja inteligência é indigente se comparada à de um Santo Tomás de Aquino … Sob tal premissa, um intelectual, de bom coração, generoso, que se imagina guiado tão somente pela razão, pode ceder à tentação do agnosticismo e da ideia laica da fraternidade esquerdista, que não lhe impõe a pena – capital para sua arrogância,- de uma fé religiosa. O caleidoscópio socialista, entretanto, coloca alguns santos no altar da história …
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Muitos se perguntam como alguém que respeitamos pela formação escolar e mesmo pela integridade em sua vida pessoal pode respaldar um político reconhecidamente corrupto, assim considerado tanto pela opinião pública quanto pela justiça. No caso da esquerda, a explicação talvez seja simples: voltamos ao “rouba, mas faz” em versão socialista.
Para os ideológicos, a roubalheira dos líderes é considerada um pecado venial, desde que promovam o socialismo. São lenientes com os deslizes pessoais, afinal ninguém é de ferro, desde que assalte o erário para auxiliar países socialistas quebrados, sindicatos ou artistas que não se sustentam sem recursos peleguistas. É a versão ideológica do “Rouba, mas faz” … no léxico do socialismo.