Estava diante de mim, a cerca de um metro. Esgueirava-se num palavreado chato. Não estava à vontade. Para manter-se mais distante do fim, recomeçou a desfiar o novelo da história. Fiz de conta que não me dava por achado, afinal sua atitude – a que o trouxera àquela cadeira,- não poderia de fato deixá-lo confortável. Ele precisava da água da complacência, que não servi. Perguntou-me como fora minha viagem. Respondi que fora boa. E a situação geral? Boa. E como nos vêem agora? Como nos viam antes.
Não, não era divertido, exatamente, até porque havia muito em jogo. Mas eu não podia tirar-lhe a primazia de iniciar o assunto que precisava abordar. E portanto fiquei a escutar. Me falou de suas dificuldades, do ano difícil, dos problemas que sua empresa vinha arrostando e da relação que pretendia preservar. Foi então que me fez rir. Percebendo enfim que perdia tempo, disse que vivíamos uma situação similar a que se vive em família, quando um de nós diz A e o outro já sabe de A a Z. Foi um breve interlúdio que encontrara para quebrar um pouco o gelo imprescindível, haja vista que fizera um negócio a partir de informações privilegiadas. Que obtivera conosco. E as usara para nos prejudicar.
O quadro em si seria engraçado se não fosse triste. Porque de fato assim se passa quando as pessoas se conhecem de longa data. Como os parentes. Ou consortes. Porque cada um conhece a lengalenga do outro. Como raramente há surpresas, é de fato uma via crucis calar para escutar o alfabeto inteiro, que se sabe de cor e salteado. Por outro lado, quanta indignação existe por parte de quem começa a falar e não pretende dizer o que sempre disse? Pretende realmente surpreender! Mas o outro nem escuta e já diz que sabe onde tudo vai chegar.
Rimos, até que dissesse a ele que agira de forma errada e rompera um trato. Foi então que se deu o pior. Olhou-me fixamente. Aprumou-se na cadeira, ajeitou os óculos e lascou:
– De fato estou num dilema e agi contra meus princípios. Mas preciso fazer deste jeito.
Sem qualquer pretensão de vestal, ou de ditar conselhos, não dei à sua sede a gota que pedia. Esperava que o aliviasse, que dissesse a ele que entendia suas razões. Fiz o contrário. Sugeri que ele não deveria agir contra seus princípios porque o resultado seria uma boa dor de consciência. Fez cara de compungido, seguida de um muxoxo de quem acusa cansaço pelo papel que desempenha como ator mambembe e simplesmente tirou a máscara. Tinha que ser daquele jeito. Precisava do negócio. E os fins, ora bolas, justificavam os meios. Mencionar princípios, portanto, não passara de retórica.
O episódio, que nada tem de edificante, foi em verdade melancólico. Aquele cidadão teve o mérito da autenticidade – como quem come frango com as mãos num salão em Versalhes,- mas isto naturalmente não bastava. Porque o ser autêntico não é necessariamente uma virtude. Fiquei a revolver o assunto até que me perdesse nas obviedades do cotidiano. Mas ficou um ligeiro travo porque falar de princípios exige certa liturgia. Como uma boa ablução. Não se fala de princípios sentados sobre interesses que desconhecem limites. É como tocar num pão, sempre sagrado, recém saído do forno, com as mãos engraxadas.
Horas mais tarde, quando já deixara para trás o evento, li uma entrevista concedida pelo presidente da república à Folha de São Paulo. Questionado sobre eventuais concessões políticas e sua situação de desconforto diante delas, o dignitário respondeu que não se sente incomodado e que “Quem vier para cá não montará governo fora da realidade política. Se Jesus Cristo viesse para cá, e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão”. Pragmático, articulador, foi porém muito infeliz, pagando alto preço por se achar o rei das metáforas. Acha que seu arsenal é brilhante e abusa. Os escorregões, porém, são profiláticos. Como o são para todos nós.
Cercado por assessores, certamente haverá de ser relembrado que Cristo rejeitou a via política porque sua missão era outra. Que Judas de fato sonhava com o poder e certamente ficou desapontado quando Cristo afastou-se da tentação política. Como também afastou-se da via revolucionária, decisão consolidada no “dai a César o que é de César”, jamais aceita pelos zelotas, a tribo de guerrilheiros judeus na luta pela libertação do tacão romano. Barrabás, por falar nele, era um zelota. E foi absolvido pela assembléia, aos gritos, para a terrível omissão do romano Pilatos. Que lavou as mãos, soltou Barrabás e entregou Cristo para a flagelação. Porque assim funciona a política e vez por outra os critérios de maioria.
Trazendo à liça política os personagens bíblicos nosso dirigente incorreu em erro triplo. Antes de tudo ao comparar-se com Cristo, revelando uma vez mais que de fato não sabe o tamanho de suas sandálias. Depois errou ao ignorar que o Cordeiro de Deus manteve-se distante das lutas e contendas das inúteis dissipações humanas. E finalmente deslizou por sugerir – qual confissão pública,- que se alia com os Judas.
Conhecemos, todos nós, vários deles. Que modernos não se contentam com trinta moedas. Que comandados pelo topo e pelos interesses sem freio perderam o pudor. Judas tantos que se suicidas fossem faltariam árvores para amarrar as cordas.