O vira-lata deitado no pátio da Fonte ergue a cabeça ao me ver, e volta a baixar sem interesse. Na minha primeira noite nesta cidade dormi aqui, mas eu vinha dopado pelo cansaço, e entrei por uma janela que achei aberta, busquei um canto, me enfiei no saco de dormir e me apaguei, sem me inteirar de quase nada do lugar. Agora as três janelas com grades de ferro estão fechadas, mas Maria me explicou como passar o braço pelas grades e afrouxar as peças que prendem por dentro. E se abrem como um alçapão.
Já dentro, vou tateando – a lanterninha apenas ilumina uma nesga de chão ou parede – e algo me detém no escuro.
É o som das gotas pingando e da água correndo para as biqueiras, dos dois lados da passarela de pedra, algo mais elevada, no centro da galeria. Apago a lanterna e os pensamentos e fico longos momentos só ouvindo, nas trevas e no vazio, a água que pinga e flui, sem nunca repetir o mesmo som.
Um sábio francês descobriu: na evolução o ouvido se formou antes, o cérebro veio depois. Isto é, primeiro aprendemos a ouvir, e a capacidade de pensar só apareceu na sequência, e condicionada por esse lampejo inicial da consciência. Agora estou aqui, querendo penetrar neste submundo de lençóis e veios de água, de galerias e túneis…
E ao mesmo tempo, sinto que vou entrando por umbrais pouco iluminados da minha mente.
Acendo a lanterna e sigo me esgueirando pela galeria, até chegar num final de corredor, onde adivinho o poço, pelo som borbulhante da água. Aponto a lanterna, é um poço de pedra quadrado, que recebe a água de um ou mais córregos subterrâneos. É aqui que eu devo mergulhar, para atravessar a parede e sair do outro lado, no túnel que conduz ao porão da Biblioteca. Tiro a roupa, enfio tudo na sacola dos apetrechos, amarro bem e entro na água. Maria tinha dito que a passagem devia estar nesta galeria, que é a da direita, mas não tinha certeza. Pelas dúvidas, estiro as pernas através da abertura, que começa um pouco abaixo do nível da água, e apalpo com os pés o outro lado da parede, de cerca de meio metro.
Recolho as pernas, mergulho de cabeça e saio do outro lado.
O túnel só tem um passadiço, que acompanha o córrego pela esquerda, para onde subo tateando, na completa escuridão. Tinha imaginado um cenário bem diferente, depois de ouvir o relato… Apalpo a sacola, abro e pego a lanterna. Boto a roupa e quase tiro de novo, por causa do calor e do ar pesado. Ao me erguer bato com a cabeça no teto do túnel. E começo a andar, lento e curvando a coluna, só enxergando uma rodinha ocre escuro de chão. No quê que eu fui me meter… Será que o nome da rua dos Afogados lá fora tem a ver com esse tipo de empreitada, matuto…
Já estava querendo parar pra descansar, quando um som de água jorrando me animou. À medida que eu avançava o barulho da água ia crescendo, e isso batia com a narrativa da Maria, só podia ser a tal vertente do Campo de Ourique. Lá chegando, apontei a lanterna e vi que a água jorrava a pouca altura acima do riacho, fui ali matar a sede. O cansaço era muito, mas quis continuar e entrei pelo túnel lateral, que ia para a direita.
Acontece que esse outro túnel, de formato quadrado, era bem encolhido. Ali só dava pra ir engatinhando. Entrei nele assim mesmo, mas depois de avançar uns três metros fui detido por um monte de areia e cascalhos que bloqueavam a passagem. Aí o cansaço me venceu e retrocedi até perto da vertente, pra descansar um pouco. Me estirei, e o último pensamento que me veio foi que já devia ser cerca da meia-noite. Aí ferrei no sono e comecei a sonhar.
Era uma noite de chuva, e eu ouvia os pingos e a água que corria pelas sarjetas. Estava na biblioteca da minha cidade e vi aparecer na portinha de entrada um homem grisalho de óculos muito grossos, equilibrando uma pilha de livros na sua mão esquerda. Era o poeta Mario Ignacio, ele veio pra bem perto de mim, ajustando com a mão seus óculos de míope. E falou:
– O Policarpo está te esperando.
Então a cena mudou, só sei que fui por uma rua escura e abandonada, que descia uma ladeira e se internava numa garagem, convertendo-se em um galeria subterrânea. Andei longo tempo debaixo das ruas e edifícios, até chegar a uma escadinha de pedra, que ascendia a uma passagem vedada por uma tampa de madeira. Subi, abri a tampa e fui me encontrar na penumbra de uma sala antiga, as paredes lembravam um mosteiro. Havia um homem sentado junto a uma mesa comprida, de costas para mim. No alto da parede havia dois grandes olhos vermelhos como rubis, que me pareciam de alguma pessoa conhecida. E ao lado do homem havia várias estantes, com livros que despediam finos raios de luz dourada, daquela cor que tinham as bordas das bíblias antigas. Lentamente o homem foi virando para me encarar, e um grande medo foi me invadindo. Ele estava ali desde sempre, me esperando, eu sabia. Finalmente nos encaramos, ele tinha olhos brancos sem pupilas, como dos anjos de pedra dos cemitérios. Aí ele ergueu o braço direito e apontou o dedo para os olhos na parede, que se injetaram de luz e iluminaram a escuridão, como duas lanternas. E pude ver que eram os olhos de uma gigantesca serpente, e seu corpo descia, se enroscava no torso magro do homem, se prolongava para a direita sobre a mesa, até entrar ondulando e sumir num buraco quadrado da parede, que era a boca de um túnel de pedra.
Então os dois grandes olhos viraram para mim e aquela luz de lanternas foi retrocedendo, até restar apenas a luminosidade própria dos olhos da serpente, fixos nos meus olhos. Eu queria fugir, mas uma força me puxava, e com passos lentos fui chegando mais perto. E de repente percebi que o olhar da serpente era o olhar do Policarpo. Mas o corpo do homem sentado não, era de um outro. E de súbito compreendi, apavorado, que ali estava o meu próprio corpo, sentado e enroscado pela serpente… E acordei com o coração disparado, suando às bicas e sentindo falta de ar.
Fui até a vertente e deixei a água fria jorrar na minha cabeça, isso me reanimou.
Mas ter que engatinhar de novo e me esfalfar pra remover o entulho que bloqueava a passagem no túnel quadrado, sentindo falta de ar… Parei um pouco pra pensar. Brincadeira tem hora. Loucura tem limite… Não morri afogado, também não quero morrer asfixiado… E decidi encerrar ali o passeio.
Agarrei a sacola, acendi a lanterninha e pus-me em marcha, de volta à Fonte.
Lá chegando, mergulhei de cabeça na água, atravessei a parede e ao vir à tona no poço da galeria, comecei a sentir um discreto alívio, como algo que se desobstruía dentro de mim. Abri a janela de barras de ferro, saí, fechei a janela e desci, sentindo o prazer de respirar o ar puro da noite. É bom estar vivo, pelo menos, pensei, enquanto olhava para o céu estrelado.
Dei alguns passos e me virei, para olhar uma última vez a Fonte, vertendo água das suas biqueiras com carrancas de deuses pagãos. E caminhei para a rua dos Afogados.