Até aqui um agosto úmido como nunca. Não me baseio em dados estatísticos, que talvez até desmintam minha sensação, baseada no chafurdar com botas plásticas no gramado. Em meio à chuva, ao frio, impertérrita e estoica fêmea quero-quero mantem-se no ninho, cumprindo seu papel na natureza. E ai de quem se aproxima. Do nada surge uma esquadrilha de proteção, composta por guardiões da reprodução da espécie, que não faz ninho em árvores. Telúrica a mais não poder, choca seus ovos num arranjo simples no solo.
Por certo os quero-queros já faziam isto quando Cabral desembarcou no Brasil. Ou quando os dinossauros foram extintos. Valentes e dotados de meios de defesa, atravessaram milhões de anos graças à preservação das características que a natureza lhes legou. Mais velhos que os homens, mostram-se sempre hostis a eles. Bendita prudência.
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Estou concluindo “Lindbergh – Uma biografia”, de A.Scott Berg. Das melhores que li. Já mencionei algures a descrição da chegada do grande aviador em Paris, cruzando o Atlântico em voo solitário e se transformando numa celebridade mundial. A fama abriu portas inimagináveis, mas também lhe trouxe dissabores e amargura, como o sequestro e morte de seu primogênito.
É claro que Charles Lindbergh não era um sujeito comum. Se o fosse não teria decolado em condições precárias de Nova Iorque – com instrumentação pobre e mapas em papel,- pela primeira vez com mais de mil litros de combustível distribuídos no pequeno “Spirit of St.Louis”. Era uma bomba voadora, que deixaria o continente pela Nova Escócia, província do Canadá, para só rever terra na Irlanda. Nas trinta e tantas horas da aventura o mundo cortou a respiração, acompanhando como podia as parcas notícias que chegavam às redações.
Do feito em diante Lindbergh trabalhou em várias frentes, atuando como consultor, cientista e dirigente. Conheceu incontáveis figuras ilustres, como presidentes, reis, artistas, escritores e grandes empreendedores, como Henry Ford. Conviveu com homens de Ciência, como Goddard e Alexis Carrel. Viajou como poucos, pelos cinco continentes, no início pilotando suas próprias aeronaves.
Tentaram cooptá-lo para a política, mas apenas o fez pelas beiradas, participando de debates que lhe causaram irreversíveis inimizades. Defendeu que os Estados Unidos não deveriam entrar no conflito europeu, o que lhe rendeu uma perseguição do presidente Roosevelt. Visitou a Alemanha, viu Hitler à distância na abertura das Olimpíadas de Berlim e foi recebido e condecorado por Hermann Göring. Na verdade visitou áreas militares dos nazistas a pedido de seu país, ao qual repassou informações, manifestando grande preocupação com o poder bélico da aviação alemã.
Externou sua admiração pelas conquistas de Hitler, mas em momento algum elogiou o nazismo em si mesmo. A condecoração e sua campanha pacifista renderam a ele a suspeita de que era antissemita e traidor. Depois do ataque a Pearl Harbor deixou para trás as pregações, não porque renegara suas convicções, mas por sabê-las extemporâneas. Não teve autorização para tornar-se piloto de combate, mas acabaria por participar de pelo menos um deles, quando abateu uma aeronave japonesa. Testemunhou crueldades de ambos os lados na guerra do Pacífico e deplorou algumas pelas quais os norte-americanos eram responsáveis.
Colaborou com um movimento denominado Rearmamento Moral, lançado em 1938 em Londres por Frank Buchman, que preconizou: “A crise é fundamentalmente moral”. Os países deveriam rearmar-se moralmente para evitar conflitos e não apenas focar na recuperação econômica. Considerado ingênuo por muitos, conseguiu espalhar suas ideias pelo mundo, mas não a ponto de evitar o brutal conflito que arrasaria a Europa. Lindbergh acabaria se interessando por causas ecológicas, de certa forma deplorando o avanço tecnológico demasiado da aviação.
Passada a guerra, visitou Willy Messerschmitt, que projetara as melhores aeronaves alemãs, desenvolvendo o primeiro avião de combate a jato e outro impulsionado por um foguete. Seu uso tardio impediu que a guerra tivesse outros vencedores. Encontrou o cientista em Oberammergau, na Bavária, assim que soube que a casa de campo em que vivia fora liberada pelas tropas americanas. Messerschmitt dormia em um estrado no celeiro.
Lindbergh viu de perto cidades destruídas, a miséria alemã e registrou em seu diário: “Eu me sinto envergonhado, de mim mesmo, de meu povo … enquanto me alimento e observo essas crianças. Elas não têm nenhuma culpa pela guerra. São somente crianças famintas. Que direito temos nós de nos estufarmos, enquanto elas apenas olham – homens bem alimentados comendo, deixando restos de comida nos pratos, enquanto crianças esfomeadas apenas olham”.
Ao mesmo tempo apoiou com fervor o Julgamento de Nürenberg porque “não podemos permitir que atrocidades como estas, dos campos de concentração, fiquem impunes”.
Lindbergh evitava a maioria dos eventos públicos para os quais era convidado. Num deles, ao discursar, motivado pela comemoração de um aniversário da aviação, lembrou que “o poder, para ser bem sucedido, precisa do suporte da moralidade, assim como a moralidade deve contar com o suporte do poder … Nós somos um povo cristão. Os ideais que professamos são elevados. Nós dispomos de todos os elementos para guiar o mundo através deste período de crise”.
Fascinado pela vida primitiva, foi algumas vezes ao Quênia e acabaria sentenciando que “A verdadeira liberdade está na vida selvagem, não na civilização”. Colaboraria com o fundo WWF, detectando espécies em extinção em suas viagens tantas, tornando-se um ambientalista.
O ambientalismo, entretanto, louvável em si mesmo, por vezes ultrapassa o fio do bom senso. Durante a Guerra do Vietnã, Lindbergh ouviu dizer que os soldados americanos estavam enviando marfim e peles de animais para os Estados Unidos. Entrou em contato com o chefe do estado-maior do Exército, que tentou tranquilizá-lo. Em meio àquela carnificina, de agente laranja e bombardeios a esmo, de mortes às dezenas de milhares, o militar garantiu que o general Westmoreland determinara que nenhum animal silvestre fosse abatido …
Alguém duvida de que precisamos de um rearmamento moral?