Dormi numa rede, na casa do Cae. Dona Genoveva anda meio arisca, não quer dar muita bandeira…
O Danilo – que reapareceu e foi à Biblioteca me procurar – comunicou que a gente terá de se mudar para a outra casa do Barroso, nos arredores da cidade. É que vai chegar o namorado dele.
Esta manhã quero ir ver o lance da carona de navio para Belém. Aquela outra do cargueiro de açúcar mixou.
Caminhando pela rua encontrei o baiano e o cearense, daquele grupo de hippies. Estavam fazendo suas artesanias, dentro de uma garagem. O dono não usa e cedeu a eles de graça, até descolarem outro lugar. Me convidaram pra ficar morando ali com eles. Ando indeciso, mas acho que tenho de ir mesmo a Belém.
Terminou o período concedido pra gente fazer refeições no RU. Amanhã já teremos de conseguir outro lugar para comer. Mas o problema principal é a viagem. E se eu ficasse por aqui?
Danilo está ficando rico, ganhando dinheiro de doadores que assinam em um caderno, onde ele escreveu na capa bem grande: Livro de Ouro. E o Ronaldo, que até pouco tempo atrás meio que desprezava ele, agora anda meio saltitante ao redor dele. E, pra que mentir, eu também estou arrasado. Fico fazendo serenata em todo lado e não tenho dinheiro nem pro selo do correio. E o Danilo, com toda a simplicidade dele, tá ficando rico.
Ontem ele saiu de bermuda e pés descalços, mas ao voltar vinha de fatiota e sapatos de verniz, fumando charuto, contando dinheiro e rindo pelos cotovelos. Não estou inventando nada. Ele nos contou o lance.
Parece que a maçonaria é bem forte por aqui. Descobriu a Loja e foi a uma assembléia deles, dizendo-se filho de um membro da Loja de Curitiba. E contou, é claro, suas grandes vicissitudes pelas estradas do país, pesquisando a vida do nosso povo. Os velhinhos se emocionaram e fizeram uma vaquinha na hora, assinando no Livro de Ouro.
(Lá tem um libanês que passou por São Luís a caminho dos EUA, mas se apaixonou por uma mulher daqui e esqueceu o Tio Sam. Que é louco por música e quer me conhecer, diz o Danilo. Ele quer me levar lá no dia de São João Batista, que é padroeiro da maçonaria, vai ter um almoço incrementado.)
Estou sentado no último banco do lado esquerdo na Igreja da Sé, há um mendigo na entrada. Recebo pelas costas a luz do entardecer, que se projeta no chão, lá na frente brilham os dourados do altar. E lá em cima, na abóbada da nave central, o lusco-fusco inventa uma tonalidade pastel nas pinturas, favorecendo mais o azul do fundo, que parece soltar tipo uma poeira azulada, que impregna minha solidão. Não há ninguém na catedral, salvo o Divino Mestre com seu manto carmesim, de braços abertos na sua nuvem, rodeado de anjos com trombetas e algumas outras figuras.
Me confesso com ele.
– Não entrei aqui para rezar, foi pra matar o tempo, tenho um encontro logo mais. Mas pra ser sincero, ainda que meio à contragosto, confesso que estou precisando de alguém, capaz de ver dentro de mim… Estou outra vez naquela cápsula mental que me envolve de vez em quando, desde a infância… São momentos que vêm e não sei porque, em que tudo parece irreal e sem sentido… É como se eu fosse de um outro mundo, que não sei onde é. E o que fazer… Pra onde ir… Sem um puto tostão no bolso… Preciso ganhar dinheiro… É pra isso que a gente vive…
(Vovô sempre comprava bilhete e ganhou a sorte grande, um milhão. De repente aquele padre, que nunca tinha posto os olhos na gente, passou a nos visitar dia sim dia não, pedindo dinheiro para as obras da Matriz… Nos ameaçando com o fogo do inferno em caso de recusa… O que tem a ver essa lembrança com este momento?…)
E se eu ficasse por aqui? Teve gente que me prometeu emprego… Poderia propor casamento à Juliana…
É…, tá difícil. Mas deixa pra lá, não vou te cansar, no fundo sei que nada tens a ver com isso. E sei que pouco caso fazes daqueles ouros lá na frente. É mais fácil te encontrar no sorriso banguela do Chapéu. No abraço do menino órfão Luís. Se não tens mais o que fazer, vê se joga uma benção pra cima de mim, que também não sou de ferro e tenho muito pela frente.
É de noite, falam mais alto todas as fontes borbulhantes.
E a minha alma também é uma fonte borbulhante…
Não sei onde li esses versos, mas eles batem com esta noite, talvez a última em São Luís.
O Chapéu taí, meio gambá como de costume, quer cantar um velho samba-canção, um dos dois ou três que ele ainda consegue lembrar. E fica me cutucando, fingindo zanga, com uma careta.
– Segura aí fogoió! Segura que é pra ti. Não quero nem saber.
Então eu faço uma introdução e o fruteiro abre o sorriso desfalcado, dois ou três dentes brilham na escuridão:
Alguém roubou meu pandeiro de estimação
Acho que foi ela…
Mas ele para no meio e fica se lamentando, que não tem um pandeiro. E bronqueia comigo, por não ter trazido um para ele. O ar úmido intumesce o som, os acordes ascendem muito doces e levam o perfume das frutas até as janelas dos sobrados, atravessam as cortinas bafejadas pela brisa e vão se aninhar entre os seios da bela jovem adormecida – no meu imaginário… No útero da noite nós comemos tangerinas, sem um gole de cachaça, que o Chapéu enxugou tudo sozinho. Luís fica ouvindo a música e diz que não está com sono, apesar dos olhos semi-cerrados. E um guarda noturno foi se chegando e ficou ali escutando. Depois nos estiramos sobre as esteiras, tendo o céu de anil por cobertor.
Há duas noites já que o cabeleireiro Barroso não me tem como hóspede.