Miranda do Norte, São Mateus, Alto Alegre, Peritoró…
Viemos aos pulos, com caronas que pintaram ou mesmo a pé, avançando do jeito que dava. Em Independência, um pequeno lugarejo, o delegado nos deu almoço. Aliás, parece que o Maranhão só aderiu mais tarde à independência, no começo não queriam se desligar de Portugal. Capinzal do Norte, Presidente Dutra, Barra do Corda… Chegamos em Grajaú no começo da noite. Foi descer do ônibus e o motor que fornece energia elétrica para a iluminação local quebrou, deu um blackout. De luz só ficaram as estrelas no seu balé cósmico e as brasas das fogueiras de São João, fumando e crepitando aqui e acolá numa névoa azulada.
O ônibus tinha passado pela entrada de uma aldeia de índios, e quando a luz voltou caminhamos até lá. Tem muitos índios da tribo dos Guajajaras no lugar, fizemos um som com um grupo deles. Depois rolou uma conversa com um rapaz de lá, que é estudante, se chama Joaquim Eniama. Nos contou que sua gente está lutando para defender suas terras, tem havido conflitos violentos, até com mortes, especialmente em Cana Brava. Um bisavô de Joaquim foi cacique da tribo no começo do século, e conseguiu expulsar todos os brancos, de Grajaú a Barra do Corda. Mas depois vieram tropas do exército e da polícia militar e foram subjugados.
– Por acaso você é parente do Raimundo Eniama, que mora em São Paulo, cursa Engenharia e joga xadrez?, perguntei.
– Quê? Vai me dizer que você conhece o Mundoca?… É meu primo. – falou Joaquim virando pro meu lado, sem nada de surpresa no seu rosto fleumático.
Contei como conheci o primo dele, revendo as cenas que rolavam na tela da minha memória.
Estávamos no Clube de Xadrez São Paulo, na rua Araújo, quase esquina com Major Sertório, naquela tarde começava o Torneio Nacional de Aspirantes. Nas preliminares, em meio à costumeira algazarra que antecede esse tipo de evento, entrou no clube o campeão brasileiro H. C., um baixinho com nariz achatado de boxeador, que ao me ver com meu instrumento pendurado no ombro ficou assanhado.
– Você toca violão?
Desencapei a viola sem dizer nada e solei o Gosto que me enrosco do Sinhô. Se fez silêncio no clube de xadrez, nos altos da pauliceia desvairada. Quando terminei de tocar, o campeão veio me pegar nos braços, como se eu fosse um íntimo seu de toda a vida. – Você tem que saber que eu sou compositor. Hoje você vem comigo, vou lhe apresentar minha gente, na noite de Sampa. Mas aí interveio o T., pedindo para dar início às partidas da primeira rodada do torneio.
O maranhense Raimundo era um dos participantes, e em algum momento tinha se atracado numa discussão bizantina com um tal de Barbalho – que falava pelos cotovelos misturando marxismo com astrologia e epicurismo. Eu me meti, dei dois ou três pitacos, e acho que foi isso que chamou a atenção do Barho, um paulista de aspecto enigmático, desenho rebuscado de rosto e de nariz, linhas finas das sobrancelhas pretas como tinta nanquim, expressão arguta do olhar. Assim poderia ser o rosto de um mago da antiga Babilônia, pensei, quando ele ofereceu em voz baixa me pôr em contato com uma organização clandestina, num momento em que estávamos urinando. Um Maurício não sei de quê estava organizando a ida de um contingente para o Araguaia. E ele poderia fazer a conexão, se eu quisesse me incorporar às lutas que se estavam preparando. Não lembro bem como driblei a proposta dele. Também não sei o que fez ele pensar que eu poderia servir para esse tipo de atividade.
Depois de vencer a minha primeira partida no torneio, resolvi aceitar o convite do H.C., me deixei guiar por ele na descida ao submundo boêmio paulistano. Mas já no segundo botequim as pessoas e as imagens da noite me chegavam como num filme confuso, e decidi maneirar. Meu guia me empurrava o copo, eu levava aos lábios fingindo tomar. Pintou um bar onde tocava um músico chamado Itamar, um rapaz negro de óculos escuros com um som cheio de firulas muito lindas. O campeão tinha sumido e puxei um papo com Itamar, perguntei se dava pra viver com o que ele ganhava ali, tocando na noite. Ele falou um bocado de coisas que não entendi bem, e era como se fosse um discurso para um monte de gente ao seu redor, o final assim: „…aqui sou o rei. Lá fora o mundo pode pegar fogo, não tô nem aí.“
Foi uma odisseia com o campeão de nariz achatado e me nocauteou, a vida na noite não era pra mim, ficou claro.
Só que nas noites seguintes passei a acompanhar o Raimundo, que depois do clube de xadrez gostava de emendar para a Boca do Luxo, que era ali pertinho, entre a boate Dakar e o cabaré La Licorne, da Praça Roosevelt. Descendo o edifício do clube de xadrez, era só alguns metros até a entrada tipo saloon de faroeste do La Vie en Rose, onde as mesas ficavam de frente pro striptease , e num palco menor à esquerda uma banda acompanhava a arte das meninas.
Quando entramos lá, eles tocavam: Dominique está num pique / Resolveu viajar / Ninguém pode segurar… E apareceu no palco uma monja missionária com sua maletinha, rosto claro de italiana duns vinte anos, era a Rosa de Maio. E a monja tirou o capuz, desamarrou o cordão, soltou o hábito e foi puxando devagarinho para cima, enquanto a música mudava para uma balada sensual: Se piange, se ridi / Io piango com te… No final do número, a Rosa de Maio estava pelada no meio do palco com uma peça da lingerie na mão e a jogou para o ar, ela descreveu um arco e foi cair na nossa mesa, entre o copo do Raimundo e o meu. Trocamos um olhar perplexo, quem de nós era o eleito?
Soaram os aplausos, a música cresceu e Rosa de Maio foi pro seu camarim, enquanto eu pensava, com certa melancolia: não devo buscar complicações.
– Rapaz, ela tá afim de você – falei decidido. Vai lá no camarim devolver a calcinha e combinar com ela, não te preocupa comigo.
Raimundo me olhou inseguro, balançando o copo entre os dedos.
Mas depois levantou e foi lá no fundo, com a peça íntima na mão.