Hoje vamos buscar alento em duas obras de dois autores diferentes, um poeta e outro músico; quando os escutamos eles nos transmitem força, parece que recuperamos o fôlego que nos falta para continuarmos. Referimo-nos a Carlos Drummond de Andrade e a Milton Nascimento.
Drummond é respeitado como um dos maiores poetas da língua portuguesa, e Milton é pautado como um compositor mundialmente renomado.
Carlos Drummond nasce em Itabira, em 1902, e morre no Rio de Janeiro, em 1987. Foi poeta, contista, cronista e farmacêutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais; igualmente foi um dos principais poetas da segunda geração do modernismo brasileiro, embora sua obra não se restrinja a formas e temáticas de movimentos específicos: os temas de sua obra são vastos e empreendem desde questões existenciais, como o sentido da vida e da morte, passando por questões cotidianas, familiares e políticas, como a utopia socialista, dialogando sempre com correntes tradicionais e contemporâneas de sua época, e as características formais e estilísticas de sua obra também são vastas, destacando-se, por vezes, o dialeto mineiro, alguma forma de falar muito própria de sua origem.
Milton nasce no Rio de Janeiro, em 1942, ele é cantor, compositor e multi-instrumentista, e sempre afirma ser carioca de nascença, mas mineiro de coração porque a família que o adotara em seus primeiros anos de vida mudou-se para Minas Gerais, quando Milton ainda era bem jovem.
Vamos dedicar nosso texto a duas obras específicas dos dois autores: o poema “José” de Carlos Drummond de Andrade e a canção “Nada será como antes”, música de Milton e palavras de seu parceiro, Ronaldo Bastos. Quanto à obra de Drummond, ela foi publicada originalmente em 1942, na coletânea “Poesias”, e ela ilustra o sentimento de solidão e abandono do indivíduo na cidade grande, a sua falta de esperança e a sensação de que está perdido na vida, sem saber que caminho tomar.
Seu início formula uma pergunta: E agora, José? / A festa acabou, / a luz apagou, / o povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora, José? // e agora, você? / você que é sem nome, / que zomba dos outros, você que faz versos, / que ama, protesta? / e agora, José? Começa por colocar uma questão que se repete ao longo de todo o poema, tornando-se uma espécie de refrão e assumindo cada vez mais força: “E agora, José?”.
Agora, que os bons momentos terminaram, que “a festa acabou”, “a luz apagou”, “o povo sumiu”, o que resta? O que fazer? Ele – ou melhor, nós mesmos – procuramos um caminho que nos possibilite um sentido possível em nossa trajetória, em nossa vida. “José”, é um nome muito comum na língua portuguesa, pode ser entendido como um sujeito coletivo, metonímia de um povo; quando o autor repete a questão, e logo depois substitui “José” por “você”, podemos assumir que ele está se dirigindo ao leitor, como se todos nós fossemos também o interlocutor. E, ao mencionar que este homem é também um poeta, Drummond abre a possibilidade de identificarmos José com o próprio autor; coloca também um questionamento fundamental: para que serve a poesia ou a palavra escrita num tempo de guerra – 1942 – miséria, destruição e barbárie?
Continuando trecho da segunda estrofe: “/ a noite esfriou, / o dia não veio, / (…) / não veio a utopia / e tudo acabou / (…) / e agora, José?” Este trecho reforça a ideia de vazio, todas as possibilidades minguaram e as coisas boas deterioram-se. Mais adiante, na estrofe final, o autor nos diz “Sozinho no escuro / qual bicho-do-mato, / sem teogonia, / sem cavalo preto / que fuja a galope, / você marcha, José! / José, para onde?” É evidente que seu isolamento é total e que José só pode contar consigo, mas ainda assim ele decide marchar em frente, mesmo que ele não saiba responder para onde.
Registramos a grande incerteza de uma atualidade da qual não estamos livres, e é por isso mesmo que apelamos à resposta que a canção do Milton nos oferece. A composição a que nos referimos data de 1971; ela não começa com uma aura – ou com leveza – ao contrário, seu início é pesado, mas chegaremos até sua conclusão; como sabemos, intitula-se “Nada será como antes”. Inicia assim: “Qualquer dia a gente se vê / Sei que nada será como antes, amanhã / Que notícias me dão dos amigos / Que notícias me dão de você / Sei que NADA será como está / Amanhã ou depois de amanhã / Resistindo na boca da noite um gosto de sol”.
O autor fala da noite como um tempo de escuridão, tristeza, mas ainda resiste um gosto de sol, que seria como a luz, a esperança; sentindo a falta dos amigos, de quem ele não tem notícias? E por que os amigos não sabem dele? Continuamos: “Eu já estou com o pé nessa estrada / Qualquer dia a gente se vê”; parece haver uma certa esperança de reencontro, portanto. E finalizando: “Sei que nada será como está / Amanhã ou depois de amanhã / Resistindo na boca da noite um gosto de sol”!
Os artistas conseguem exprimir melhor do que nós as aflições e as aspirações humanas. A esperança de que vivências felizes do passado possam perpetuar-se é frequente aspiração de muitos de nós. Em todas as etapas da vida estamos sujeitos a perdas acompanhadas de lutos mais ou menos profundos e duradouros; a progressiva percepção da irreversibilidade do tempo – “nada será como antes” – e a consciência da solidão – “Que notícias me dão de você? – se constituem em marcos importantes ao longo da vida, e os versos do coautor Ronaldo Bastos catapulta a uma inexorável verdade: “nada será como antes amanhã”.
Mesmo correndo o risco de um tolo otimismo, ainda coloco minha compreensão de que serão possíveis futuros novos empreendimentos e novas conquistas ou, como diz o poeta: “resistindo na boca da noite um gosto de sol”! Minha percepção de que à pergunta de Drummond, “E agora, José”, pode-se responder, seguindo Milton, de que nós estaremos logo ali, “resistindo na boca da noite um gosto de sol”: é o que nos resta e é esta a nossa tarefa.