A Turquia fermento de fé cristã.
Entrevista, realizada em setembro 2022
1 – O P. Aires Gameiro esteve recentemente na Turquia, numa viagem-peregrinação que o levou até aos locais mais simbólicos do património religioso/cristão. Em termos gerais, o que mais destaca de tudo quanto viu e apreciou?
Impressiona mais é a posição charneira da Turquia entre a Europa e a Ásia, e a proximidade da África. Logo à chegada, surpreende a grandeza do novo aeroporto, e dizerem que as linhas aéreas turcas têm mais destinos. Longe vai o tempo em que o persa Dario mandou construir de barcos a primeira ponte no Bósforo e os sultões as estalagens da Rota da Seda. As três pontes, o túnel ferroviário subaquático; e, paralelo ao estreito do Bósforo, em breve, um canal de 45 kms, para o mar Negro, a engrandecer esta Rota de toda a História. Inumeráveis povos semearam as suas culturas de que se mantêm vestígios, monumentos, basílicas e mesquitas; cidades subterrâneas e grutas esculpidas e habitadas. Um retrato do homem construtor, destruidor, reconstrutor e inovador de tantas caldeiradas culturais, qual parábola da humanidade.
As culturas religiosas predominantes, judaica, cristã e muçulmana, sucederam-se e como que substituíram a religiões politeístas da bacia oriental do Mediterrâneo. A Boa Nova de Cristo, as comunidades cristãs primitivas de Paulo, os seus mártires, monges e teólogos abriram por ali caminhos de fé cristã. No tempo bizantino realizaram-se nas suas cidades sete concílios: Niceia, no ano 325, I de Constantinopla, em 381, Éfeso, em 431, Calcedónia, em 451, II de Constantinopla, em 553, III de Constantinopla, em 680, e II de Niceia, no ano de 787. Em todos eles se apresentaram e proclamaram doutrinas fundamentais do Cristianismo por vezes expressas em termos gregos. Foi construída a magnífica Santa Sofia com os mosaicos de Cristo Pantocrator e Maria com o Menino que continuaram a presidir aos tempos muçulmanos-otomanos, de muitas mesquitas e dezenas de palácios; e à laicidade, desde Mustafá Kemal Ataturk no século XX até hoje.
2 – E, hoje, como se apresenta o panorama monoteísta?
A Turquia é um país cheio de potencialidades e promessas culturais, religiosas e cristãs. Diria mesmo que não se pode minimizar a promessa da sementeira cristã católica se olharmos à riqueza das raízes primitivas evangélicas e a algumas comunidades e “lugares santos” por todo o país. Não se pode separar a cultura helenista da cristã dos mártires, do monaquismo e da bizantina. Não foi suprimida pela cultura muçulmano-otomano de 500 anos, tanto mais que nesta se mistura a cultura bíblico-judaica e cristã. É certo que a maioria da população segue a tradição muçulmana sunita, não, porém, a prática. Haverá cerca de 30% de Xiitas (seita de Alevis) não rituais; têm as suas casas de oração, sem Ramadão nem as 5 orações diárias. Dos 98% dos habitantes (85milhões), uns 60% vivem cada vez mais na laicidade e na liberdade religiosa. No périplo de 10 dias e cerca de 3.000 kms observámos apenas uma dezena de mulheres de rosto coberto. Muitos cenários citadinos não se diferenciam muito dos europeus, apesar dos omnipresentes minaretes.
Mesmo a corrente mística do sufismo dervixe do seculo XIII existe apenas em estado latente. Em Kónia, por exemplo, os dervixes iniciados pelo místico Mevlana restam apenas como tradição no mosteiro-museu. Dizia-nos o guia que se oferece ali aos turistas um espetáculo banal dos dervixes rodopiantes, reduzido a folclore sem conteúdos reais de iniciação ao desprendimento místico total do sufismo.
O futuro desenvolvimento dos cristãos católicos (uns 100 mil arménios, siríacos, gregos, latinos, refugiados e emigrantes) depende da coerência da sua prática de fé em Cristo. E a meditação sobre as raízes cristãs e os mártires de ontem são apelo a vivê-la hoje.
3 – A Turquia, atualmente de maioria muçulmana, e Estado laico, é considerada um dos berços do cristianismo. Muitos cristãos foram perseguidos no passado e outros tantos fugiram para a Ásia Menor, onde se estabeleceram em cidades como Hierápolis, Éfeso, etc. Como se encontram hoje essas memórias; mantêm-se?
Existem ali raízes, vestígios e pequenas comunidades vivas alimentadas por emigrantes dos países vizinhos e da África. Naquele domingo a bela igreja de Santo António em Istambul estava cheia, talvez de maioria africana. A Turquia é memória cristã e testemunho. Os cristãos do primeiro século, no tempo de S. Paulo, começaram a distinguir-se dos judeus nas sinagogas da diáspora. Iam tendo as suas casas de oração e partilha eucarística e de ajuda fraterna, e receberam o nome de cristãos em Antioquia. Já não se confundiam com seita judaica. E nos tempos romanos, Nero queimou os cristãos em Roma, mas não os judeus. Mais tarde, os cristãos iam ter a Páscoa em dia diferente dos judeus. O fermento do Reino de Deus ia levedando, o relato inicial sobre Jesus Cristo (Quelle), os textos de Paulo, Marcos e logo os de Lucas, atestados pelo martírio de cristãos, entravam na mente e corações. O Espírito atuava, mais livre dos labirintos fantasiosos dos textos apócrifos. Esse fermento deixou sementes de vida cristã. Pela rota da seda, de camelos e cavalos, terá depois passado parte da evangelização de S. Paulo; e no século VII a dos monges nestorianos até Xian (China), como narra a biblioteca de estelas que visitei em 2002. Hoje, pelas rotas e autoestradas passam milhares de turistas e peregrinos (30 milhões anuais) de muitas culturas e religiões à procura das raízes cristãs. «O passado bizantino de Istambul e Anatólia…[são] milhares de igrejas e mosteiros espalhados por todo o campo – muitas delas em ruínas e abandonadas. […] a silhueta maciça de Santa Sofia – Hagia Sofia – que remonta à primeira metade do século VI sob o imperador Justiniano, pelo seu tamanho e graça, […] lembra ao visitante que a sociedade turca também é construída sobre um passado cristão. Não devemos esquecer essa continuidade invisível atualmente». (Cf.https://www.acn.org.br/os-cristaos-na-turquia-entre-o-passado-e-o-presente/ (acedido a 3.09.2022). Havia continuidade cultural ente a Ásia Menor, ilhas do mar Egeu e Grécia.
4 – É possível identificar bem os locais por onde andou São Paulo, os autores dos Atos dos Apóstolos e do Apocalipse?
Sim, os mapas e guias contêm dezenas de nomes bíblicos, helenistas e romanos do primeiro século, da Bíblia, epístolas, Atos e Apocalipse. Antes de haver turcos na Turquia havia gregos, judeus e, no primeiro século, os cristãos naturais deste território habitaram em muitas cidades e regiões, como por exemplo: Ancira, Antalia, Antioquia da Pisídia, Antioquia da Síria, Bitínia, Calcedónia, Capadócia, Cilicia, Colossos, Constantinopla, Derbe, Éfeso, Esmirna, Faselis, Filadelfia, Frígia, Galácia, Hierapolis, Icónio, Laodiceia, Lícia, Lídia, Lístria, Magnésia, Mileto, Mira, Mísia, Mitilene, Neapolis, Niceia, Niceia, Nicomédia, Niza, Panfília, Patara, Pérgamo, Perge, Ponto, Priene, Sardes, Selêucida, Tiatira, Troade. Nem podemos esquecer que viveram na Ásia Menor dezenas de santos mártires, alguns bispos. Basta lembrar Policarpo, Inácio, Nicolau (pai Natal), Basílio.
5 – Considera-se também que Nossa Senhora esteve e morreu em território turco e aqui terá começado o seu culto por parte dos primeiros cristãos…, como se explica essa presença?
Nos anos 40, quando as perseguições aos seguidores de Jesus recrudesceram em Jerusalém com a morte de S. Tiago, S. João, a quem Jesus na Cruz entregou a sua Mãe, ele a terá levado de barco em viagem de duas semanas, para lugar seguro junto da comunidade de Éfeso e instalou-a a 8 kms onde viviam alguns cristãos. O local exato foi esquecido. As revelações da mística Beata Catarina Emerich permitiram encontrar as ruinas da casa no século XIX; os terrenos foram comprados e a casa restaurada para capela. Venerada como santuário católico (e muçulmano), é hoje visitada por multidões de peregrinos e utilizada para o culto. Em 1988 tive a alegria de poder concelebrar ali com o capelão dominicano, salvo erro, e o meu confrade, o missionário Pe. Manuel Nogueira. Tornei a visitá-la em 2006 e agora em 2022 em que a fila contínua de peregrinos não permitia parar na capela. Junto da capela correm várias bicas da nascente que teria sido usada por Nossa Senhora. A celebração ali da Missa por Bento XVI, em 29.11.2006, aumentou as probabilidades de ter sido ali que se deu a Dormício e a Assunção de Nossa Senhora.
6 – Muitos povos habitaram e passaram pela Ásia Menor, tendo como referência a Turquia… Sente-se, ainda hoje, o espírito ecuménico e o encontro de várias civilizações?
Penso que vai crescendo com a liberdade religiosa laica devido também a tantas multidões de peregrinos e turismo religioso, e a estudos arqueológicos de centenas de locais, de mosteiros cristãos, alguns ainda habitados, (Mardin), e de monumentos bizantinos e otomanos. Seria de desejar que na Arábia Saudita, Afeganistão e Paquistão, etc., a liberdade religiosa facilitasse o mesmo espírito de entendimento mundial.
Vitória Meneses