Para dormir procuramos a delegacia, na rua da Tarrafa, ao lado do bar do Delcio, o delegado nos cedeu um canto. Quando amanheceu voltamos para a estrada, muito poeirenta. Paramos no começo da ponte sobre o rio Grajaú. O sol estava belíssimo e as águas corriam tagarelas sobre musgos e pedras, lavadeiras também tagarelavam, batendo suas roupas. Eu vinha com muito pó no corpo e nos cabelos, não resisti. Deixei a mochila e tudo mais na ponte, desci para as águas e pedi um pedaço de sabão a uma lavadeira, que estava de maiô. Depois subi e fiquei secando no sol, meus cupinchas já tinham seguido adiante.
Cruzei a ponte e vi um cidadão com uma vassoura, varrendo umas pedrinhas ou tirando o pó da estrada de terra. Enquanto varria, cantava uma música do Zé Keti que eu sabia e cantei junto, me aproximando. Pouco depois estávamos num papo, com ele me aconselhando a ficar por ali trabalhando na construção da estrada. Que isso de malandragem sem dinheiro não pega não. É o Tom Mix dos Santos, carioca. Como todo o pessoal que encontramos no caminho, ele é empregado da Cia. de Engenharia de Construção (1º Grupamento do Exército). Estão trabalhando na estrada BR 226 e ramificações. Posso conseguir um trabalho como apontador, me garantiu.
– Mas Tom Mix, porque você fica tirando o pó da estrada de terra, é como tirar água do mar com uma caneca, não acha?
– Você tem que entender, no momento não há muito o que fazer aqui. Mas eu sou o único homem negro no grupo, mais em cima carioca. Se eu ficar de bobeira, balançando na rede, daqui a pouco tem um otário desses aí me dedurando por vadiagem, tá de dentro…
Conversei bastante com o Tom Mix, mas depois fui na casa do sr. Costa, telegrafista da Cia., seguindo o conselho de uma lavadeira. Ronaldo e Danilo já estavam lá, é uma casa de barro, como as outras. Mas é a maior de todas, vende bebidas, coisa e tal. Nos convidaram para comer, depois Danilo foi dormir e o Ronaldo foi procurar carona no centro de Grajaú. Eu fiquei tocando e bebendo com a galera do Costa.
A tarde foi passando. Lá fora o Tom Mix estava varrendo o pó da estrada. O sr. Costa estava lidando com os telégrafos. Tinha um cara pagando as bebidas. Ao meu lado um rapaz vindo de Teresina para trabalhar de escrevente-datilógrafo se sacudia de frio em uma rede, tinha pego malária. Há duas semanas já está na rede na casa do seu Costa, bebendo as poções de chifre queimado e as garrafadas que a mulher do Costa lhe ministra. Ela é do Xangô, benzedeira e tal. No outro dia mataram uma preguiça e ela recolheu pelos, olhos, dentes e as garras, para fazer trabalhinhos.
Pela noitinha apareceu o Jair com a mulher e o irmão. E um macaco-prego no ombro. Eles andavam de mochila por aí, e se empregaram na Cia. É uma aventura e tanto a construção de uma estrada assim, nos confins. Vem gente de tudo que é parte. Aí o pessoal fica arranchado em casas de barro que erguem rapidamente, perto do trecho que estão construindo. Concluído esse trecho, a Cia. avança para construir o pedaço seguinte e todo o pessoal se muda e vai construir novos ranchos de barro mais adiante.
Alguém caçou um ouriço-cacheiro e começaram a preparar uma janta em casa do seu Costa. O n úmero de pessoas havia aumentado e trouxeram whisky e rum, não sei de onde descolaram. Jantamos e saímos, num bando de oito marmanjos, pra fazer serenata na pracinha do lugar. Mas o que saiu foi uma zoeira infernal, uma bagunça em que ninguém se entendia e todos bebiam. Acabamos indo para um lugar noturno, eu fiquei num canto tocando violão. De repente no salão de dança alguém deu um tapa na lamparina e ficou tudo escuro. E foi aquela correria e gritaria. Mas não aconteceu nada de mais. Tom Mix e eu saímos, fomos embora.
Era uma noite linda, parecia que estávamos em um imenso presépio e as estrelas eram bolas de pinheirinho. Paramos em uma praça deserta e ficamos cantando. Depois fomos dormir no rancho de barro do Tom Mix. E veio outra manhã. E estávamos comendo bolachas no rancho de um outro pessoal, quando aparece o Jair, pedindo para ir tocar violão na casa dele. Fui lá, tinha uma pernambucana charmosa, ficou me dando beijinhos, coisa e tal.
O mico se chama Riquimu e é muito esperto. Jair mostrou um coco, ele pegou e foi abrir, batendo numa pedra. Bom, estou contando tudo por cima, na corrida. Não há tempo para mais detalhes. Mas eu estava meio enminhocado, como que cheirando uma armação. E Jair estava preparando um prato especial para o almoço. Foi quando apareceu o Tom Mix e me chamou lá fora.
– Bicho, não quero estragar sua festa. Mas tão fofocando lá na cidade, que aqui ninguém mais quer trabalhar. Todo mundo só quer beber e cair na farra, desde que você chegou. Bicho, te cuida, eu conheço essa galera. A qualquer momento o capitão Arlindo deve pintar por aqui, ele tá desconfiado de vocês. Vai querer te interrogar.
E Tom Mix me jogou um olhar enviesado. Eu tinha escutado tudo com atenção, ao mesmo tempo que observava um caminhão que foi chegando e encostando.
– Segura aí Tom -, falei levantando. E fui ao encontro do motorista, que tinha acabado de descer da cabine. Ele me avisou que só ia demorar ali alguns minutos. Fui voando buscar a mochila no rancho, me despedi do Tom rapidamente e me acomodei na carroceria do caminhão, sobre a carga de sacos de arroz.
Brincadeira… Mas não tinha ideia de onde poderiam estar Danilo e Ronaldo.