Partimos de Grajaú e depois de uns cinquenta quilômetros enveredamos por uma estrada lateral que parecia mais uma trilha aberta na mata. Mata amazônica, bem entendido. O caminhão tem que varar os rios no peito e na raça, não há pontes. De vez em quando atola. Aí o motorista Genésio me explica como recolher galhos de árvores, arbustos e folhas em grande quantidade para forrar o leito e desatolar.
Passamos por algumas aldeias indígenas. Uma índia bonita completamente nua me acenou rindo. De outra aldeia mais adiante um índio com o cabelão sofisticadamente penteado e alongado estilo Elvis Presley apontou para mim e gritou: “Ô cabeludo!” Pra minha surpresa o caminhão parou e Genésio desceu e me fez sinal que já voltava. Comprou dos índios um saquinho de qualquer coisa. E seguimos viagem.
Muito longe não chegamos, ao cruzar o rio Pindaré o caminhão atolou. E foi o pior momento da viagem. Nos esfalfamos forrando o leito do rio com ramos e pedras, mas as rodas resvalavam e o caminhão não conseguia ultrapassar um pequeno trecho um pouco elevado. – Não tem jeito, vamos ter que pedir ajuda –, falou o motorista.
E começamos a caminhar de volta, rumo à aldeia dos índios, que são da nação dos Krikatis. Lá Genésio explicou a situação e um grupo de seis ou sete se prontificou a ajudar. Ao retornar ao caminhão com eles, percebi o dístico escrito no para-choque traseiro: “Não me siga! Estou perdido!”
Genésio prendeu o motor e começamos a empurrar atrás, e os outros a puxar de uma corda presa na dianteira. E funcionou, o caminhão saiu adiante, em meio aos gritos efusivos.
Enfim, depois de rios varados, atoleiros e buracos, chegamos em Imperatriz, às três da madrugada.
Agradeci ao motorista e caminhei para o que parecia ser um hotel, com um restaurante e vários bancos na frente, em uma área coberta. E chuveiros gratuitos. Larguei a mochila e tomei uma ducha, a água ficou escura.
Apesar de ser madrugada o burburinho era forte, com gente indo e vindo por ali. Me sentei em um canto do restaurante e comecei a tocar violão e cantar. Em pouco tempo juntou um grupo ao meu redor e apareceram três figuras com aspecto de sulistas, que me chamaram pra fazer uma serenata. Topei o convite, com a condição de que me trouxessem conhaque, previamente. É que além do olho irritado pela poeira da estrada, minha garganta estava meio avariada.
– Um conhaque aquece e revigora – expliquei, ensinando o padre a rezar missa.
Trouxeram o conhaque e saímos cantando – chegou a turma do funil -, eu até meio chocado das minhas boas condições, depois da frente de trabalho, da escapulida em cima dos sacos de arroz e da odisseia em terras dos Krikatis, ali estava, – todo mundo bebe mas ninguém dorme no ponto, no comando de outra frente, sem tremer o joelho nem a mão – nós é que bebemos e eles que ficam tontos.
Entramos num carro e fomos acordar um amigo deles. Arrancamos o cidadão do meio do sono, o Jorge cantando e eu no violão:
… A minha cama é uma folha de jornal…
O Amaury gostou da brincadeira, trouxe whisky, ficamos um tempo na casa dele cantando. E em vez de voltar pra cama, foi se vestir dizendo que devíamos emendar para a casa do Francisco. De fato, quem estava emendando há um bom tempo era eu, e por isso cortei a bebida. Em cinco, nos apertamos no carro e Amaury me explicou:
– O seu Chico é mais velho, você sabe alguma música mais antiga?
– Música antiga?… Alguma toada. Ou algo do Vicente Celestino… Deixa comigo, falei.
Paramos em frente à uma casa de dois andares. Fiz uma introdução e cantei:
Noite alta, céu risonho
A quietude é quase um sonho…
A rapaziada não conhecia essa música do Cândido das Neves, mas antes que eu chegasse na metade a janela se abriu, no segundo andar. E um senhor moreno apareceu e sacudiu a mão com o dedão para cima, agradecendo.
Começava a amanhecer, e Jorge falou:
– Segue o barco, vamos lá na Lúcia.
Eu naturalmente não tinha a menor ideia de onde estávamos, mas me pareceu que era a mesma rua do Anápolis.
E não me enganei, o hotel era ali perto, era a lei do eterno retorno, estávamos voltando ao nosso ponto de partida.
– Você sabe Santa Lucía?, Jorge pergunta.
Eu aprovo com o dedão e começo a dedilhar a valsa, ele canta.
Abre a janela / Pro luar de prata
Escuta ó bela / A serenata
Que aqui te chama / E te reclama
Saanta Lúcia! / Saanta Lúcia!
E apareceu na janela uma bela de rosto carnudo, fechando a camisa de dormir e bocejando.
Mas dali seguimos para o hotel, onde Nelson – que é dono de uma boate – mandou vir um café da manhã incrementado. Depois me levaram pra dormir, na boate.