Skip to content

Não me siga, estou perdido

  • Setembro 16, 2022
  • Cultura
  • José Rogério Licks

Partimos de Grajaú e depois de uns cinquenta quilômetros enveredamos por uma estrada lateral que parecia mais uma trilha aberta na mata. Mata amazônica, bem entendido. O caminhão tem que varar os rios no peito e na raça, não há pontes. De vez em quando atola. Aí o motorista Genésio me explica como recolher galhos de árvores, arbustos e folhas em grande quantidade para forrar o leito e desatolar.

Passamos por algumas aldeias indígenas. Uma índia bonita completamente nua me acenou rindo. De outra aldeia mais adiante um índio com o cabelão sofisticadamente penteado e alongado estilo Elvis Presley apontou para mim e gritou: “Ô cabeludo!” Pra minha surpresa o caminhão parou e Genésio desceu e me fez sinal que já voltava. Comprou dos índios um saquinho de qualquer coisa. E seguimos viagem.

Muito longe não chegamos, ao cruzar o rio Pindaré o caminhão atolou. E foi o pior momento da viagem. Nos esfalfamos  forrando o leito do rio com ramos e pedras, mas as rodas resvalavam e o caminhão não conseguia ultrapassar um pequeno trecho um pouco elevado. – Não tem jeito, vamos ter que pedir ajuda –, falou o motorista.

E começamos a caminhar de volta, rumo à aldeia dos índios, que são da nação dos Krikatis. Lá Genésio explicou a situação e um grupo de seis ou sete se prontificou a ajudar. Ao retornar ao caminhão com eles, percebi o dístico escrito no para-choque traseiro: “Não me siga! Estou perdido!”

Genésio prendeu o motor e começamos a empurrar atrás, e os outros a puxar de uma corda presa na dianteira. E funcionou, o caminhão saiu adiante, em meio aos gritos efusivos.

Enfim, depois de rios varados, atoleiros e buracos, chegamos em Imperatriz, às três da madrugada.

Agradeci ao motorista e caminhei para o que parecia ser um hotel, com um restaurante e vários bancos na frente, em uma área coberta. E chuveiros gratuitos. Larguei a mochila e tomei uma ducha, a água ficou escura.

Apesar de ser madrugada o burburinho era forte, com gente indo e vindo por  ali. Me sentei em um canto do restaurante e comecei a tocar violão e cantar. Em pouco tempo juntou um grupo ao meu redor e apareceram três figuras com aspecto de sulistas, que me chamaram pra fazer uma serenata. Topei o convite, com a condição de que me trouxessem conhaque, previamente. É que além do olho irritado pela poeira da estrada, minha garganta estava meio avariada.

– Um conhaque aquece e revigora – expliquei, ensinando o padre a rezar missa.

Trouxeram o conhaque e saímos cantando – chegou a turma do funil -, eu até meio chocado das minhas boas condições, depois da frente de trabalho, da escapulida em cima dos sacos de arroz e da odisseia em terras dos Krikatis, ali estava, – todo mundo bebe mas ninguém dorme no ponto, no comando de outra frente, sem tremer o joelho nem a mão – nós é que bebemos e eles que ficam tontos.

Entramos num carro e fomos acordar um amigo deles. Arrancamos o cidadão do meio do sono, o Jorge cantando e eu no violão:

… A minha cama é uma folha de jornal…

O Amaury gostou da brincadeira, trouxe whisky, ficamos um tempo na casa dele cantando. E em vez de voltar pra cama, foi se vestir dizendo que devíamos emendar para a casa do Francisco. De fato, quem estava emendando há um bom tempo era eu, e por isso cortei a bebida. Em cinco, nos apertamos no carro e Amaury me explicou:

– O seu Chico é mais velho, você sabe alguma música mais antiga?

– Música antiga?… Alguma toada.  Ou algo do Vicente Celestino… Deixa comigo, falei.

Paramos em frente à uma casa de dois andares. Fiz uma introdução e cantei:

Noite alta, céu risonho
A quietude é quase um sonho…

A rapaziada não conhecia essa música do Cândido das Neves, mas antes que eu chegasse na metade a janela se abriu, no segundo andar. E um senhor moreno apareceu e sacudiu a mão com o dedão para cima, agradecendo.

Começava a amanhecer, e Jorge falou:

– Segue o barco, vamos lá na Lúcia.

Eu naturalmente não tinha a menor ideia de onde estávamos, mas me pareceu que era a mesma rua do Anápolis.

E não me enganei, o hotel era ali perto, era a lei do eterno retorno, estávamos voltando ao nosso ponto de partida.

– Você sabe Santa Lucía?, Jorge pergunta.

Eu aprovo com o dedão e começo a dedilhar a valsa, ele canta.

Abre a janela / Pro luar de prata
Escuta ó bela / A serenata
Que aqui te chama / E te reclama
Saanta Lúcia! / Saanta Lúcia!

E apareceu na janela uma bela de rosto carnudo, fechando a camisa de dormir e bocejando.

Mas dali seguimos para o hotel, onde Nelson – que é dono de uma boate – mandou vir um café da manhã incrementado. Depois me levaram pra dormir, na boate.

Categorias

  • Conexão | Brasil x Portugal
  • Cultura
  • História
  • Política
  • Religião
  • Social

Colunistas

A.Manuel dos Santos

Abigail Vilanova

Adilson Constâncio

Adriano Fiaschi

Agostinho dos Santos

Alexandra Sousa Duarte

Alexandre Esteves

Ana Esteves

Ana Maria Figueiredo

Ana Tápia

Artur Pereira dos Santos

Augusto Licks

Cecília Rezende

Cláudia Neves

Conceição Amaral de Castro Ramos

Conceição Castro Ramos

Conceição Gigante

Cristina Berrucho

Cristina Viana

Editoria

Editoria GPC

Emanuel do Carmo Oliveira

Enrique Villanueva

Ernesto Lauer

Fátima Fonseca

Flora Costa

Helena Atalaia

Isabel Alexandre

Isabel Carmo Pedro

Isabel Maria Vasco Costa

João Baptista Teixeira

João Marcelino

José Maria C. da Silva...

José Rogério Licks

Julie Machado

Luís Lynce de Faria

Luísa Loureiro

Manuel Matias

Manuela Figueiredo Martins

Maria Amália Abreu Rocha

Maria Caetano Conceição

Maria de Oliveira Esteves

Maria Guimarães

Maria Helena Guerra Pratas

Maria Helena Paes

Maria Romano

Maria Susana Mexia

Maria Teresa Conceição

Mariano Romeiro

Michele Bonheur

Miguel Ataíde

Notícias

Olavo de Carvalho

Padre Aires Gameiro

Padre Paulo Ricardo

Pedro Vaz Patto

Rita Gonçalves

Rosa Ventura

Rosário Martins

Rosarita dos Santos

Sérgio Alves de Oliveira

Sergio Manzione

Sofia Guedes e Graça Varão

Suzana Maria de Jesus

Vânia Figueiredo

Vera Luza

Verónica Teodósio

Virgínia Magriço

Grupo Progresso de Comunicação | Todos os direitos reservados

Desenvolvido por I9