Imperatriz é a cidade que mais arrecada imposto no Maranhão, depois da capital. A maioria aqui são aventureiros, gente que vem de outros lados para trabalhar com madeiras ou no que seja e enriquecer o mais rápido possível. Ou se ralar e fugir o mais rápido possível.
Há muita arma e pouco policiamento, volta e meia ocorre um crime de morte. Parece uma daquelas buliçosas cidades da corrida do ouro, dos filmes de faroeste americanos. Pelas ruas de terra, de vez em quando você vê passar um mariscador com boné de pele de onça. Também os amigos que fiz vieram para cá inexperientes e dispostos a arriscar, parece que estão se dando bem. Júnior é dono de uma fazenda e comercia com arroz. Nelson tem a boate e alguma outra coisa. Mas os outros, ainda não sei a que se dedicam.
Ontem fizeram um galeto e depois voltei pra boate, estava ainda cansado da maratona na noite anterior. Pela tardinha Júnior veio me acordar, trazendo roupas novas e bacanas para mim provar.
– Do jeito que você está, o porteiro não vai lhe deixar entrar na boate…
Foi demais me ver no espelho, tirando os farrapos e vestindo os veludos e as sedas! Na noite a boate estava bem concorrida. E eu bem vestido, como há muito tempo não acontecia. Pernoitei em casa de Júnior e pela manhã apareceu um casal de mochilas, Lena e seu namorado. Eles estavam vindo de Buriti, um lugar no Rio Tocantins. Acampar nas ilhas é uma grande paixão deles. A outra é o taoísmo. Enquanto preparavam um almoço, Lena leu trechos do seu livrinho.
Quem sabe
não fala.
E quem fala
não sabe.
Lena estudou direito.
Quanto mais leis e decretos,
mais ladrões e bandidos haverá.
Bateram na porta, Júnior abriu e entrou um cachorrinho pequinês puxando pela cordinha uma mulher de cabelos escuros e olhos grandes e fleumáticos.
– Escute este versinho Nô – falou Lena, parece com você.
Mesmo quando perseguida,
a borboleta
nunca parece apressada.
O olhar da recém-chegada ganhou um brilho discreto, ela pegou o cachorrinho e foi sentar perto da janela. E desde esse momento ela dominou a cena com sua aura estranha. Ela fala pouco, mas assim mesmo irradia proximidade e calor. Ouve tudo com atenção e empatia, e no entanto parece sempre distante, fora do grupo. Claro, ela é mais velha, mas esse não é o ponto, tem outra coisa que eu não sei definir. Seja como for, sua aparição me trouxe uma lembrança adormecida da infância.
Era um homem muito magro e comprido, cabeça pequena de cabelos vermelhos lisos, boca fina e rasgada e um pescoço comprido com papada muito branca. E olhos saltados e fixos. Era conhecido como Jacaré, não fazia parte das rodas mais finas e elegantes… Certo domingo depois da missa, para pasmo de todos, o Jacaré apareceu passeando na praça municipal de fraque e cartola, segurando uma cordinha comprida e esticada como ele, puxada por um minúsculo e branquíssimo pequinês, que trazia no pescoço uma gravata borboleta preta…
Eles conversam animados, especialmente o Júnior, mas eu tinha viajado para trás e não presto atenção no que dizem. Faço anotações no meu diário, até que a voz grave da Nô me puxa de volta.
– Eu fora, nem me chamem, porque tenho alergia de arma. Prefiro ficar na minha, na inteligência.
Júnior me olha de relance e põe-se a falar de sua fazenda. Mas Lena se atravessa e pede:
– Nô, fala aí pra gente do leão de Buda.
A fleumática fica um momento imóvel, depois levanta e vai pegar o cachorrinho, que tinha ido deitar num sofá, com o focinho entre as patas.
– Bem – ela começa, voltando a sentar com o pequinês no colo -, ele parece um bichinho de pelúcia, mas é atrevido, e quando quer, enfrenta bichos com o dobro do seu tamanho. Nunca começa briga, mas também não recua frente à qualquer um. Em casa ele se adapta bem no dia a dia, participa em tudo e pode ficar bastante tempo sozinho, é muito independente. Nem sempre é obediente, e é teimoso. Mas também saber ser carinhoso e brincalhão. Só que ronca, ronca demais quando dorme… A raça é das mais antigas do mundo e se supõe que se originou do cruzamento de um cão de companhia chinês com o Terrier tibetano de Lhasa. Mas só ficou mais conhecido na ascensão do budismo, durante a dinastia Tang, quando se difundiu a lenda da sua origem. Segundo ela, um leão se apaixonou por uma símia-borboleta, e Buda ajudou-os, diminuindo e nivelando os tamanhos, e assim surgiu o Leão de Buda, com a coragem do pai e a doçura da mãe. Durante muitos séculos o pequinês era exclusividade dos imperadores chineses. Mas no século XIX os ingleses saquearam a Cidade Proibida e trouxeram cinco exemplares para a rainha Vitória, que ficou gamada e deu impulso à reprodução de pequineses.
– A Nô é formada em Teatro, tem pós-graduação na Europa – diz Lena virando pro meu lado.