Almoçamos, Júnior pegou um maço de folhas mimeografadas e fomos para a boate.
Lá já estavam os outros esperando, e ao entrar percebi pela primeira vez o grande espelho redondo pendurado na parede, que devolveu a luz da porta aberta e multiplicou os presentes.
Júnior distribuiu as folhas de letras roxas cheirando a álcool e, depois de um comentário curto, começou a ler.
“Na história do conhecimento humano sempre existiram duas concepções acerca da essência do mundo: uma metafísica, e a outra dialética… A metafísica considera os fenômenos do mundo como isolados…”
Ao final de alguns trechos ele calava e se abria uma discussão sobre o que fora lido. Fui acompanhando na minha folha mimeografada, o debate durou bem umas duas horas e teve seu ponto alto na discussão do conceito de contradição, como sendo o princípio universal, gerador das causas internas que dão origem a todos os fenômenos e suas transformações, em contraposição à ideia metafísica do agente externo.
“Não há fenômeno que não contenha contradição. O próprio movimento é uma contradição. A contradição é a essência do mundo… Na matemática temos mais e menos, diferencial e integral. Na mecânica ação e reação. Polos positivo e negativo na eletricidade. Ofensiva e defensiva, a vitória e a derrota… O mundo é feito de pares de contrários, onde um não pode existir sem o outro.”
Em certo momento Lena pediu para fazer um aparte e leu do seu livrinho.
“Quando o mundo conhece o belo como tal,
se descobre a feiúra.
Quando o mundo conhece o bem como tal,
se percebe o mal.
Porque o ser e o não–ser crescem juntos.
O fácil e o difícil se complementam.
O longo e o curto se formam um do outro.
O antes e o depois confluem no mesmo fluir.”
Se fizeram uns momentos de silêncio, e Júnior se apressou a por as coisas no lugar, retomando a leitura de outros trechos.“O desenvolvimento do conhecimento humano é sempre um movimento em espiral, do particular ao geral e do geral ao particular…”
Nesse ponto a mente me passou uma rasteira, lembrei da espiral no redemoinho do marinheiro Procópio em São Luís e viajei nas lembranças, perdendo o fio da meada. Do que se seguiu apenas pude apanhar aqui e ali ideias esparsas.
“Conhece o teu adversário e conhece-te a ti próprio e poderás, sem riscos, travar um cento de batalhas…”
No final a Nô me convidou para um copo de cerveja, fomos sentar numa mesinha no fundo do salão. Lá estava o João Carlos, que me saudou enquanto acenava para o pessoal que ia partindo.
– Mas e aí tchê, que ventos te trazem por estas bandas?
Meio embatucado, não respondi logo. Ele tinha um jeito de olhar que misturava simpatia com determinação e outra coisa mais, talvez sentimento de poder, sopesei mais tarde numa reflexão. O rosto tinha algo de familiar, conhecido, mas não atinei de onde. E antes que eu destravasse a língua pra falar qualquer coisa, ele levantou, cochichou algo no ouvido da Nô, deu tchau e foi pegar carona com o Nelson, que estava de saída. Nô me passa o copo com cerveja e vai direto ao ponto, depois do nosso tintim.
– Estou querendo formar um grupo de teatro para montar peças aqui no salão da boate. Três ou quatro integrantes fixos, mais dois ou três convidados, tudo muito simples. E preciso de um músico. Você compõe?
Dou um tempo, enquanto ela toma um gole.
– Já fiz algumas músicas – falo sem muito afã. Mas e o público, de onde vai sair?
Ela me explica que no começo não é necessário ter público, porque o mais importante são os ensaios. E se põe a desfiar uma fala longa e reveladora.
– Tem muito bicho-grilo chegando na região, onde o pessoal vem realizando um trabalho há vários anos… – ela começa. Andarilhos, hippies, mochileiros de todo tipo, alguns até que souberam da coisa e querem participar, se tocaram pra cá…
– Sem dúvida, é um contingente multifacetado, mas com muita gente boa e em condições para ser incorporada aos nossos empenhos – Nô pontuou. Só que muitos têm uma ideia romântica do que está rolando por aqui…