Quem nos pousa esta questão é, nada mais nada menos que o Sr. José, funcionário da Conservatória Geral do Registro Civil: e atentem que somente ele possui a chave de todos os nossos nomes, e que igualmente só ele tem um nome de batismo! Por outro lado, nós não sabemos mais como nós chamamos; existimos, mas não somos ninguém, em outras palavras, tudo o que fazemos é inútil, sobrevivemos, mas sem qualquer significado!
Esta é a chave do romance de José Saramago intitulado “Todos os nomes”: creio que o único prenome do livro acaba sendo um ardil do autor para com seus leitores, para que estes busquem compreender o trabalho do empregado e que, finalmente, as pessoas consigam fazer jus a seus nomes. Daqui em diante, vamos expor nosso texto de maneira mais linear; primeiramente, sobre nosso autor: José Saramago é um escritor português, nasceu em 1922, na região histórica do Ribatejo, zona central de Portugal, e em 2010 morreu em Lanzarote, uma das ilhas do arquipélago das Canárias, no Oceano Atlântico.
O autor recebeu o galardão do prêmio Nobel de Literatura de 1998, e ganhou também, em 1995, o Prémio Camões, considerado o mais importante prêmio literário da língua portuguesa. Saramago é considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa. Outras distinções honoríficas: em 1985 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, e em 1998 foi elevado a Grande-Colar da mesma Ordem, uma honra geralmente reservada apenas a Chefes de Estado.
A título póstumo, em 2021, no âmbito da abertura oficial das comemorações do centenário de seu nascimento, foi condecorado com o grau de Grande-Colar da Ordem de Camões por “serviços únicos prestados à cultura e à língua portuguesas”, sendo ele o primeiro membro titular desta ordem honorífica recém-instituída. Ainda destacamos que seu livro “Ensaio sobre a Cegueira”, publicado em 1995, foi adaptado para o cinema e lançado em 2008; em 2010 foi adaptado para o cinema português um de seus contos, da coletânea “Objeto Quase”, e em 2014, também foi levado à cena seu livro “O Homem Duplicado”, em realização francesa.
E no setor musical, foi criada uma ópera a partir de seu romance “O Memorial do Convento”, na Scala de Milão, em 1990. Em 2007, é constituída a Fundação José Saramago para a defesa e difusão da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos problemas do meio ambiente, e a seguir, em 2012, a Fundação José Saramago abre suas portas ao público na Casa dos Bicos, no Museu de Lisboa. Entre romances, crônicas, peças teatrais, contos, poesias, diário e memórias, literatura Infantil e relatos de viagens, o autor publicou mais de cinquenta obras.
De todos seus textos, escolhi “Todos os nomes” porque encontro nele um assunto que nos toca muito de perto, em nossa atualidade: a anomia, ou seja, a anarquia ou a desorganização, o desaparecimento dos padrões normativos de conduta e de crença. Tal situação destrói ou altera profundamente o corpo social, político, desarranja a ordem que até então reinava em um conjunto organizado, e aniquila qualquer tentativa pessoal de saber seu próprio nome. A obra de José Saramago tornou-se conhecida pela peculiaridade das narrativas que abordam temas significativos relacionados aos problemas dos homens com o seu tempo, como o medo da morte, a história e o seu peso na memória da sociedade, os sentimentos mais diversos, também os problemas que constituem a contemporaneidade.
O autor escreve romances em que elabora uma crítica à sociedade voltada ao egoísmo, à solidão, ao consumismo desenfreado e às desigualdades. “Todos os nomes” é um romance que trata da ideia do nome, em uma alusão à linguagem e à identidade revelada através do nome atribuído a cada indivíduo e a seu posto ou função dentro da organização social. Este romance estabelece as relações entre a linguagem a e representação dos indivíduos que surgem a partir da constituição do nome – ou, como ele impacta, a destruição desses nomes e, se seguimos adiante, a extinção do tecido social.
A alegoria criada por José Saramago neste romance é o que mais vemos por aí: são incontáveis Josés – pessoas sem nome que foram engolidas pela burocracia e pelo mecanicismo em que se tornaram meras peças orgânicas dentro da lei de sobrevivência. Passamos à sinopse do livro: como sabemos, o Sr. José é seu principal personagem; ele é um modesto escriturário da Conservatória Geral do Registro Civil, prédio monumental, labiríntico, totalitário, com todos os arquivos e fichários de vida e de morte das pessoas.
Ali, na repartição, lugar de relações hierárquicas bem definidas, ele trabalha durante o dia. Em sua aparente humildade e autêntica solidão, ironicamente o Sr. José, escrevente de ofício, é o único personagem da obra com nome, ainda que incompleto o que, de certo modo, iguala-o aos outros, em detrimento de sua própria identidade autoconsciente. O relato das aventuras e peripécias, inicialmente noturnas, desse aparente cumpridor exemplar de suas funções burocráticas, começa por descrever seu passatempo inocente de colecionar recortes impressos sobre pessoas famosas.
Solitário, carente em bens materiais e afetivos, sem que, contudo, falte-lhe dignidade humana para completar as informações oficiais aos dados impressos que coleciona, ele comete infrações ao regulamento que, num crescente, acabam por surpreender a si próprio e ao leitor, transitando entre os domínios da vida e da morte, da ficção e da realidade. Típico personagem do limiar, Sr. José vai constituindo sua autoconsciência e sua percepção de que existe um mundo externo a si próprio. As transgressões que comete nas variadas situações vão revelando seu duplo e transformando a relação com o “outro”. O Sr. José mantém conversas com o teto de sua casa com a mesma naturalidade que teria com amigos em uma mesa de bar (se os tivesse).
Tudo ele registra em seu caderno de anotações, de modo que a escrita passa a ser o fio condutor do conhecimento e do novo relacionamento com o Chefe; nesse sentido, a escrita oficial contrapõe-se à ficcional. Enfim, de um determinado momento em diante, o Sr. José toma como obsessão a procura da história completa de uma mulher incógnita, cujo registro por acaso caíra no excesso de uma remessa habitual.
Também, mais avante, o Sr. José extravasa a cápsula que era sua vida até aquele momento, do pequeno cubículo que tinha como casa e o trabalho da Conservatória Geral do Registo Civil. O Sr. José, depois de muitos anos, começa a travar relações sociais, começa a se atrever a ultrapassar limites, e como ele próprio diz, começa a viver. Tudo em órbita da busca de mais informações sobre a mulher desconhecida que por algum acaso veio na remessa de “cinco registos que afinal se tornaram seis”.
Concluímos nosso texto de modo avesso à epígrafe do romance: “Conheces o nome que te deram, não o nome que tens”; José coloca a frase à prova, ao longo do livro. Vemos um homem de nome comum conformado às suas ações cotidianas se transformar em algo completamente excepcional, em alguém que embarca numa aventura sem certeza de sucesso e se torna alguma pessoa diferente – alguém que ele sempre foi, mas nunca conseguira externalizar. Alguém mais à frente de um simples “José”, alguém que faz a diferença. Se formos audaciosos, poderíamos afirmar que é possível, sim, pensarmos e buscarmos novos horizontes e perspectivas a serem descortinados; isto possibilita que o leitor possa transitar entre o personagem e o autor, Sr. José e José Saramago.