Joaquim Maria Machado de Assis, considerado por muitos especialistas como o maior nome da literatura brasileira e um dos mais respeitáveis autores da língua portuguesa, apresenta-nos um conto – dentre seus múltiplos – o qual nos faz mergulhar em um tema de abusos políticos e de interesses pessoais; imaginem só se tal situação é viável! Sim, com efeito, o autor do século XIX – ele viveu entre 1893 e 1904 – conta-nos a história do Dr. Bacamarte (somente seu nome já é um excesso, considerando-se que ele significa uma antiga arma de fogo de cano largo, ou ainda uma pessoa gorda e inepta, e cujo sentido é sempre pejorativo).
Pois bem, continuando, ou melhor, começando nossa trama, o texto leva por título “O Alienista” e foi publicado em 1882, quando aparece incorporado à coletânea de contos “Papéis Avulsos”. Destacamos que, à época, alienista era o nome correspondente ao título atual de psiquiatra. Trata-se de um conto onde se narra a história do Dr. Bacamarte, um alienista que cria a Casa Verde, um local para realizar estudos inéditos sobre a mente humana, mas acaba se perdendo em sua própria loucura.
Este texto inaugura a fase realista de Machado de Assis e apresenta diversas características que a obra desse escritor apresentará a partir de então, tais como a pesquisa descritiva, a análise de traços de personalidade e da psique dos personagens, o tom crítico sobre as instituições e a sociedade, sobretudo a elite, a exibição de falhas de caráter, derrotas pessoais e comportamentos duvidosos, enfim, a análise psicológica e a observação social.
Primeiramente, sabemos que o Dr. Simão Bacamarte viajara para a Europa, onde conquista respeito em sua carreira profissional, sendo reconhecido tanto lá como aqui, no Brasil, para onde ele decide voltar, mais especificamente para Itaguaí, sua terra natal e escolhida, algum tempo depois, como sede de um manicômio denominado Casa Verde. Dr. Bacamarte retorna à pátria exatamente para se dedicar ainda mais a sua profissão; após um determinado tempo de vida na vila de Itaguaí, ele casa-se com a viúva Dona Evarista, de aproximadamente vinte e cinco anos de idade, alguém que não se poderia chamar de bonita, tampouco de simpática; mas ele não se detém a esses aspectos porque interessa-se somente em ter filhos com ela; o que, na realidade, não acontece (para nós, leitores atentos, já observamos esta situação como uma “derrota pessoal”).
Passada uma certa época, Dr. Bacamarte efetiva a construção do manicômio Casa Verde para abrigar todos os loucos da cidade e da região. Em pouco tempo o local fica cheio, e ele vai ficando cada vez mais obcecado pelo trabalho. No começo os internos eram realmente casos de loucura e a internação era aceita pela sociedade, mas a partir de certo momento, Dr. Bacamarte passa a enxergar loucura em todos e exagera na quantidade de pessoas por ele colocadas em asilo.
Tal situação causa espanto, é lógico, e o primeiro a ser internado por “excesso” é o Costa, um homem que perdeu toda sua herança emprestando dinheiro aos outros, mas que não conseguia cobrar seus devedores; a partir daí diversos outros personagens são internadas pelo alienista – o que ressaltamos, neste trecho, são as “falhas de caráter” e os “comportamentos duvidosos” dessa sociedade que se deixa aprisionar por alguém tão maldoso; como é possível que tantas pessoas sejam iludidas e obedeçam a um louco de forma tão passiva!
Em torno da figura quase mítica do Dr. Bacamarte, que segue com rigidez e frieza suas teorias científicas, Machado de Assis dispõe outros personagens ricos em detalhes. Dentre toda espécie de tipos sociais, destaca-se D. Evarista, sua esposa dedicada que ama e admira o marido, mas que, por mais que ela respeite todo o conhecimento e sabedoria do alienista, ela não segue suas recomendações médicas e tem ciúmes da dedicação que ele demonstra a sus estudos, em detrimento dela. Dr. Bacamarte lhe proporciona uma viagem pelo Rio de Janeiro, e mesmo assim ela fica muito deprimida, pela pouca atenção que o marido lhe dispensa, quase voltando a se sentir uma viúva novamente. Todos na cidade veem na volta de D. Evarista a solução para as inesperadas internações feitas pelo alienista; porém, mesmo após o retorno dela à vila, Dr. Bacamarte continuou agindo da mesma forma.
Em contrapartida, temos Crispim Soares, que é o botânico da cidade: ele admira, respeita e segue tudo o que o Dr. Bacamarte diz, porém, apena por interesses próprios, de forma a conseguir vantagens através do alienista. Além desses dois personagens em destaque, temos o barbeiro Porfírio, homem que representa o político reocupado em obter somente vantagens pessoais.
Com o tempo, enquanto as internações vão se sucedendo e deixando a população de Itaguaí alarmada, o clima se torna cada vez mais tenso na cidade, e o barbeiro Porfírio, que há muito almejava ingressar na carreira política, resolve armar um protesto. Porém, quando se descobre que o alienista pediu para não receber mais dinheiro pelos internos, generaliza-se a crença de que as inúmeras reclusões não seriam movidas por interesses econômicos mesquinhos, e o movimento se enfraquece. Porfírio, no entanto, movido por sua ambição de chegar ao poder, consegue armar a Revolta dos Canjicas: o barbeiro era conhecido pelo seu codinome “Canjica”.
A população se dirige à casa do Dr. Bacamarte para protestar, porém, surpreendentemente, é recebida por ele com muita tranquilidade; por um momento, a fúria do povo parecia ter sido controlada, mas a população se revolta novamente quando o alienista lhe dá as costas e volta a seus estudos. Fez-se apelo, então, à força armada da cidade e ela chega para tentar controlar a população. Porém, para a surpresa de todos, a polícia se junta aos revoltosos, e Porfírio se vê em uma posição de poder, como líder de uma revolução; ele resolve, então, dirigir-se até a Câmara dos Vereadores para destituí-la.
Agora com plenos poderes, Porfírio chama o Dr. Bacamarte para uma reunião, mas, em vez de despedi-lo, junta-se a ele e assim as internações continuam na cidade. Desnecessário confirmar todos os tipos de personalidades maus-caracteres, estão todos aí: fingidos, aproveitadores, passam por ser boas pessoas quando são exatamente o seu oposto. Incrível, não é mesmo? Dias depois, muitos dos apoiadores da Revolução dos Canjicas são internados, e um outro barbeiro, o João Pina, levanta-se contra e arma uma confusão tão grande que Porfírio é deposto. Mas a história se repete, e o novo governo também não derruba a Casa Verde; pelo contrário, ela é fortalecida, as internações continuam de forma acelerada, e até D. Evarista é internada após passar uma noite sem dormir por não conseguir decidir que roupa usaria numa festa (a vaidade é um perigo!).
Ao final deste conto, 75% da população da cidade encontra-se internada na Casa Verde, enquanto o alienista, percebendo que até então esteve errado, resolve libertar todos os internos e refazer seu pensamento: se a maioria apresenta desvios de personalidade e não segue um padrão, então louco é quem mantém regularidade nas ações e possuí firmeza de caráter.
Com base em sua nova teoria, o Dr. Bacamarte recomeça a internar as pessoas da cidade, e o primeiro deles é o vereador Galvão, o único contrário à lei proposta pelos vereadores de que eles não poderiam ser recolhidos à Casa Verde. Assim, as internações continuam, enquanto outras pessoas, porém, são consideradas curadas ao apresentarem algum desvio de carácter!
Após algum tempo, ele dá alta a todos os presentes na Casa Verde, depois de tratar o equilíbrio mental; assim, ele desenvolve uma nova regra de conduta: como ninguém tinha uma personalidade perfeita, exceto ele próprio, o alienista conclui ser o único anormal e decide trancar-se sozinho na Casa Verde, vindo a falecer poucos meses depois. Este conto é apresentado como “humorístico” e caracteriza-se pela denúncia social realizada pelo autor.
Poucos textos conhecemos de tamanha profundidade; a ironia típica do estilo de Machado e sua escrita de coerência lógica permitem que se ria de uma situação das mais dramáticas e ao mesmo tempo das mais consistentes pela qual passamos em nossas vidas. Felizmente sabemos ler e compreender o que o autor nos propõe, e assim escapamos um pouco da realidade – é para isso que servem as letras e, além disso, a literatura nos permite pensar melhor e exercer nossa análise pessoal de reforma.