– No cinema os ianques estão ganhando a guerra, comandados pelo canastrão John Wayne. Mas na verdade, de nada adiantou enviar mais de meio milhão de soldados, bombardear 26.000 aldeias vietnamitas com Napalm e com o Agente Laranja, que a Monsanto produziu para matar, provocar câncer, contaminar a água e destruir o meio-ambiente….
Os soldados americanos vivem com medo, porque na lavagem cerebral que recebem, cada monge, cada camponês, cada criança pode ser uma ameaça fatal à sua vida. Mas não tem jeito, os vietcongs são formiguinhas incansáveis e vão expulsar os boinas verdes…
– O maior medo, o pai de todos os medos, é o medo de enfrentar o Nada, ao morrer. Mas não viemos do nada e não desaparecemos no nada. Todo monge budista aprende desde cedo a meditar sobre a verdadeira natureza do espírito, em que se revela o vazio essencial de tudo o que nossos sentidos captam, formando a mente cotidiana. Em última análise, não há nascimento e não existe morte… A essência do ser e o nada, são a mesma coisa. Ainda que – por vivermos no mundo da dualidade – o ser exista antes que o nada. Ou seja, o nada depende do ser.
Mas o nada é a liberdade. O vazio que o indivíduo ocidental encontra ao olhar para o seu interior é a sua liberdade de escolha, de dirigir suas ações para onde quiser, de forjar ele mesmo seu caminho. Só que ele tem medo dessa liberdade, à qual está condenado, por ser sua essência. E procura fugir, se dissolvendo nas distrações consumistas da vida comum. Quando isso falha, lança mão dos antidepressivos e tranquilizantes de todo tipo, que ajudam a fugir de si mesmo…
Nô puxa da bolsa um caderno grosso, abre ao acaso e me exibe duas páginas manuscritas em tinta azul. – Como você, eu também mantenho um diário – diz ela folheando, procurando algo. Afinal encontra e me desafia:
– Vê se decifra esta charada.
E lê do seu caderno.
Ele só nasce na medida em que é chamado.
Ele existe na medida em que se transforma.
Quem precisa dele é quem o conhece.
Quem o faz crescer é aquele, a quem ele pode servir…
Dou um tempo, matutando, peço pra ler no caderno. Os versos estão bem encadeados…
– Eu meio que intuo algo, mas sinceramente não consigo atinar com o sentido – falo meio a contragosto.
– Tudo bem, ninguém está correndo pra tirar o pai da forca, depois a gente vê. Mas anote no seu caderno e vá bolando uma música, pra ser cantada na peça que vamos montar, que vai se chamar O Viajante Resolvido.
Então ela se cala, busca o copo de cerveja, leva aos lábios, tudo naquele jeito lento, me observando, como se quisesse medir o efeito produzido até ali. Eu anoto a letra no meu caderno, sentindo um redemoinho de ideias, perguntas e pressentimentos me envolvendo, junto com uma duvidosa euforia. Combinamos nos encontrar de novo amanhã, durante a noite ela quer escrever um esboço dos três atos, que já tem na cabeça.
– Ainda que mal pergunte Nô, mas você vive de quê, tem atividade remunerada?
– Eu viajo pelo Tocantins e pelo Araguaia, vendo roupa pros ribeirinhos, a preços módicos – diz Nô, lacônica.
Depois ela foi embora e eu me enfiei no saco, fiquei matutando, repassando e encaixando as peças do quebra-cabeça. E dormi um sono profundo, sem sonhos.
No outro dia Nô chega pela manhã, com a aparência meio emaciada, parece que varou a noite. Nos sentamos no salão e ela me abre o caderno, com algumas letras pra mim copiar. Começo a rabiscar, enquanto ela vomita a loucura toda…
Bicho-grilo deu um tapa
No baseado e relaxou…
– É um carioca de Santa Tereza, formado em filosofia, lê de tudo, de Kierkegaard a Pessoa, usa óculos de aro do John Lennon e cavanhaque. Foi preso no congresso de Ibiuna e depois de solto, o vazio de uma existência sem sentido, vigiado e sem direitos, escancara o porão da angústia. E ele começa a fazer pesquisas de mercado na rua, único trabalho que consegue. Pra comprar uma passagem pra Europa ou outro lugar qualquer, longe daqui. Num momento inspirado da química cerebral decide torrar tudo o que possui e viajar para o oriente.
Pousou um dedo no mapa
E foi ver o que encontrou
Na névoa da anfetamina
Voou como urubu
Cruzando a Cochinchina
No rumo de Katmandu
(É um estilo meio de cordel, penso, lembrando um folheto que comprei em Juazeiro