Nô continua me descrevendo o primeiro ato, o personagem voa para Paris e lá consegue uma passagem para o Nepal, fazendo escala no Camboja. Ele chega em Phnom Penh com o dia amanhecendo, e tem doze horas livres antes de continuar o voo. Ele resolve passear um pouco e encontra um grupo de orientais falando francês. Ele puxa conversa, são vietnamitas e quando ele diz que nasceu em Santa Tereza, no Rio de Janeiro, todos se voltam para ele com os rostos iluminados.
– Mais ou menos por aí deve terminar o primeiro ato. Que é que você acha, dá pra pensar um ritmo pra dança do personagem?
– Ah, é blues, não tem nem que pensar muito. E o canto do coro também, é puro blues – falo.
O segundo ato é um pouco como o segundo passo da regra três do Hegel – continua Nô. Neste ato deve expressar-se o lado luminoso do Nada, que é a liberdade absoluta que abre para todas as possibilidades, a Plenitude idêntica ao Vazio. Pela primeira vez na vida Bicho-grilo começa a sentir-se em casa, é uma sensação que aparece mais na mente mas aos poucos vai impregnando todo o corpo. É uma sensação de não faltar nada, de ir desaparecendo todo o espaço vazio e ir aflorando cada vez mais forte a satisfação de estar vivo. Os baseados e as bolas saem de cena por completo. E Nô me ensina.
Tem um lvro onde se lê: “Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado… O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho…”
E agora se fala muito de mutantes, de homem novo… Uma idéia que surgiu várias vezes ao longo da história.
E tem o pessoal do Vajrayana, cujas técnicas visam liberar a luminosidade natural que todos possuímos, o diamante interior, que jaz nas profundezas do ser, soterrado pela ignorância, pelo desejo, pelo interminável vaivém do pensamento discursivo… Uma liberação em benefício de todos.
E o poeta da Rua dos Douradores viveu o mote dos antigos navegadores, Navegar é preciso, viver não é preciso. “Não conto gozar a minha vida, nem gozá-la penso… Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha…” E o apóstolo dos gentios falava da necessidade de formar o corpo de luz…
– A nossa peça Nô iniciática tem a ver com tudo isso, seu escopo é provocar no ator-candidato uma transformação radical, fazendo aflorar suas melhores qualidades e banindo seus medos e confusões. É transformar o vil metal em ouro, como diziam os alquimistas…
Nô começa a folhear novamente no seu caderno buscando algum texto e um retrato escapa dali, voa pro chão e ali fica, olhando para mim. Quando olho ele, fico de cabelo em pé.
– Nô, quem é esse cara aí no retrato?
– Quê? Ah, é o Mário – ela fala, pegando a foto e enfiando de volta no caderno. E se apressa em retomar a narrativa interrompida da peça. (Só que o rosto que me olhou do chão… Era o rosto de mago babilônico que havia me interpelado tempos atrás no clube de xadrez em São Paulo, me convidando para atividades bélicas… De repente minha consciência é como um rio de dois braços, separados por uma ilha de escuridão e tentação. Por um lado escuto ávido as falas da fleumática mulher, e por outro a memória me puxa para vários momentos lá atrás que, agora sei, sinalizavam para este momento. Não dei importância à proposta do babilônico, tenho repugnância por toda espécie de arma. Mas assim mesmo, pelos descaminhos da Providência, vim para cá, para esta espécie de encontro marcado… Talvez seja verdade o que um amigo me falou, lá em Ouro Preto:
– É inútil falar de liberdade, somos todos marionetas, manipulados pelos cordéis do Big Brother celestial…)
– Tudo começa quando o mais falador dos vietnamitas pergunta se Bicho-grilo sabe quem foi Ho-Chi-Minh – diz a voz da Nô em tom mais alto, me puxando de volta do devaneio.
– Mais bien sûr – responde ele, puxando demonstrativo o cavanhaque.
Aquele que ilumina
E conheceu o meu Rio
Acende uma lamparina
Pra clarear meu vazio
No que se segue, Bicho-grilo fica de boca aberta, ao saber que Ho Chi Minh morou no Rio de Janeiro, perto da casa onde ele nasceu. E trabalhou de cozinheiro num restaurante da Lapa. Ele tinha fugido da Indochina trabalhando num barco francês, onde adoeceu gravemente, e os franceses o deixaram no Rio para morrer em terra, alguns anos antes da Primeira Guerra Mundial.