Daqui a um mês, nossa Adélia Prado festejará seus oitenta e sete anos. Ela nasceu em 13 de dezembro de 1935, em Divinópolis, cidade localizada no centro-oeste de Minas Gerais e a somente 120 km distante da capital, Belo Horizonte.
A autora é poetisa, professora, filósofa, romancista e contista, e sua produção é ligada ao chamado movimento modernista de 1922, a saber, quando diversos autores e de múltiplas tendências artísticas propõem reformar aquela cultura considerada ultrapassada, em busca de uma arte atualizada e mais próxima da espontaneidade cultural. É por aí que vamos descobrir a literatura de Adélia, e encantar-nos com ela.
Sua obra retrata o cotidiano com perplexidade e arrebatamento, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características de seu estilo único. Em 1975, envia o manuscrito de sua coletânea “Bagagem” para a coluna de crítica literária do Jornal do Brasil, com sede no Rio de Janeiro, e a seguir, Carlos Drummond de Andrade toma conhecimento de suas poesias e as repassa à publicação de seu primeiro livro, pela Editora Imago. Em 1976, a autora lança esse mesmo livro “Bagagem” na capital do país, com a presença de autoridades políticas e de intelectuais da mais alta expressão artística.
Professora por formação, ela exerceu o magistério durante vinte e quatro anos, até que a carreira de escritora tornou-se sua atividade central. Em termos de literatura brasileira, o surgimento da escritora representou a revalorização do feminino nas letras e da mulher como ser pensante, tendo-se em conta que Adélia incorpora os papéis de intelectual e de mãe, esposa e dona-de-casa, e sua obra trata de temas como a religião, a condição feminina e o amor.
A autora vem de uma família modesta e é alfabetizada aos sete anos de idade, em um Grupo Escolar próximo a sua casa; aos quinze anos, logo após a morte de sua mãe, em 1950, ela inicia a escrita de poemas e no ano seguinte, aos dezesseis, ela ingressa na Escola Normal, onde conclui o curso de magistério, em 1953. Começa a lecionar em 1955, casa-se com um bancário, em 1958, e dessa união nascem cinco filhos. Antes do nascimento da última filha, em 1966, a escritora e o marido iniciam o curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis; em 1972, morre seu pai, e em 1973 Adélia forma-se em Filosofia. É a partir dessa etapa que ela começa a enviar cartas e muitos originais de seus escritos e poemas a professores e a especialistas em literatura, no intento de ver seus textos publicadas.
A lista de obras da autora aproxima-se de cinquenta, divididas entre poesia, prosa, balé, parcerias, e com traduções de seus obras, especialmente em inglês, nos Estados Unidos, e em espanhol, na Argentina e no México. Destacamos também a importante confissão de sua influência sobre o pedagogo brasileiro Rubem Alves, psicanalista, educador, teólogo, escritor, e igualmente sobre o premiado autor moçambicano Mia Couto.
A partir de agora, consagramos nossa atenção à análise da obra de Adélia Prado; habitualmente, considera-se sua obra-prima – ou magnum opus – a coletânea intitulada “Bagagem”. Sobre a origem do título, Adélia diz: “Entre outros títulos que me ocorreram, “Bagagem” era o que resumia, para mim, aquilo que não posso deixar ou esquecer em casa: a própria poesia”. Em “Bagagem”, Adélia faz uso do lirismo e da ironia, também da religiosidade e do profano, e ainda do cotidiano da mulher, da morte e da alegria; há também referências a outros poetas consagrados, como o próprio Drummond, o que veremos a seguir.
O título é “Com licença poética”: “Quando nasci um anjo esbelto, / desses que tocam trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira. / Cargo muito pesado pra mulher, / esta espécie ainda envergonhada. / Aceito os subterfúgios que me cabem, / sem precisar mentir. / Não tão feia que não possa casar, / acho o Rio de Janeiro uma beleza e / ora sim, ora não, creio em parto sem dor. / Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. / Inauguro linhagens, fundo reinos / – dor não é amargura. / Minha tristeza não tem pedigree, / já a minha vontade de alegria, / sua raiz vai ao meu mil avô. / Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou.”
Como vimos, inserido em seu livro de estreia, “Com licença poética” é o poema que inaugura a obra e faz uma espécie de apresentação da autora até então desconhecida do grande público; os versos tecem uma clara referência – e homenagem – ao “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade, o qual reconheceu e valorizou, nesse primeiro poema de Adélia, sua escrita modernista, o tom de oralidade, marcado pela informalidade e pelo desejo de proximidade com o leitor. É como se o eu-lírico generosamente se oferecesse a nós, entregando suas qualidades e defeitos sob a forma de versos; nessa poesia vemos também a questão do que significa ser mulher na sociedade brasileira, sendo sublinhadas as dificuldades que o gênero costuma enfrentar.
Destacamos um segundo poema, intitulado “Momento”: “Enquanto eu fiquei alegre, / permaneceram um bule azul com um descascado no bico, / uma garrafa de pimenta pelo meio, / um latido e um céu limpidíssimo / com recém-feitas estrelas. / Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios, / constituindo o mundo pra mim, anteparo / para o que foi um acometimento: / súbito é bom ter um corpo pra rir / e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo / alegre do que triste. Melhor é ser.” Este texto trata da transitoriedade do tempo, do correr da vida e de como se deve escolher levá-la.
Para ilustrar as várias fases da existência, a autora faz uso de imagens simbólicas como o bule azul descascado e a garrafa de pimenta pelo meio; as duas imagens sublinham o processo de desgaste e uso inerente à vida; alinhado com os objetos estão signos aleatórios como o latido de um cão e um céu limpo, itens que ocupam espaço no nosso cotidiano repetitivo, e após essa justaposição de matérias e afetos, a poeta conclui o poema de uma maneira positiva e com um tom otimista, destacando o corpo que ri e a alegria que vence a tristeza.
Como sabemos, seus poemas carregam uma linguagem coloquial e simples, o que torna sua obra leve e original; é sempre um prazer a leitura dos versos de Adélia. O poder humanizador da poesia aí se faz presente de uma forma muito próxima de quem a lê, o que torna possível a facilidade de compreensão de sua obra repleta de sentimentos e até de esperança (pode-se afirmar). Finalmente, o terceiro poema, “Fragmento”: “Bem-aventurado o que pressentiu / quando a manhã começou: / não vai ser diferente da noite. / Prolongados permanecerão o corpo sem pouso, / o pensamento dividido entre deitar-se primeiro / à esquerda ou à direita / e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia: / algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda, / um vento bom entra nessa janela.”
O poema se inicia com a imprecisão do dia e da noite e com o elogio àquele que teve sensibilidade para perceber quando o sol nasceu; além disso, há uma série de conflitos presentes nos versos: o tempo que passa e não passa, a noite que chega e não chega, o corpo que quer se movimentar mas afinal está em repouso, o pensamento inquieto com a posição do deitar; no real, não sabemos quem é o paciente em questão que faz o anúncio da passagem das horas, mas podemos concluir que, apesar das angústias, o poema se encerra de uma maneira solar.
Apesar das dicotomias apresentadas em “Fragmento”, terminamos a leitura apaziguados pela presença da brisa agradável que entra pela janela porque o tom da lírica é otimista, positivo. Entretanto, uma passagem bizarra na obra de Adélia Prado aconteceu: é que a autora marcou um período de “silêncio poético”, durante cinco anos, a partir de 1994; durante esse período, ela não publicou nenhum novo título e, ao ser questionada por que, ela afirmou que fora “um período de desolação. São estados psíquicos que acontecem, trazendo o bloqueio, a aridez, o deserto”. Felizmente, passado esse tempo, a autora voltou com “Oráculos de Maio”, uma coletânea de poemas, e “Manuscritos de Felipa”, uma prosa curta, ambos em 1999. Fiquemos com o que nos oferece Adélia Prado: ela faz poesia com o bom tempo e o retrato cotidiano da perplexidade e do encanto, ela recria o fenômeno poético da natureza iluminada, ela nos permite ser melhores e até alegres.
Não contém vírus.www.avast.com |