– Os vietnamitas fazem parte de uma coluna e vão retomar sua marcha na madrugada, margeando o rio Mekong, levando suprimentos para os companheiros em Tân Châu – continua Nô. As horas tinham se passado e de repente Bicho-grilo lembra que tinha de voltar ao aeroporto e seguir viagem para Katmandu… Um cansaço indizível vai se apossando dele, junto com a velha angústia de sempre.
– Afinal de contas, o que é que eu quero, o que é que eu perdi no Nepal? – ele se questiona. E sentindo um arrepio subir pelo corpo, ele pergunta aos vietnamitas se o aceitariam como um novo combatente. Todos se entreolham indecisos e o baixinho falador se apressa em explicar que a coisa não é um passeio, é subir serras escarpadas e abrir caminho na mata cerrada, podendo ser surpreendidos e aniquilados pelas forças inimigas.
Mas Bicho-grilo insiste, e seu jeito transfigurado e decidido é convincente. E os vietcongs o recebem como novo integrante da coluna.
Ele foi aceito e vai nascer
Ele se transforma e ganha um rosto
Ele se integra e vai crescer
Rei morto, rei posto
Seu vazio vira entreposto
Da vontade de poder
– Neste ato o clima tem até de leve a doçura de viver, apesar das dificuldades – diz Nô. Mas nem por isso a música deve ganhar um tom sentimental. Sei lá, talvez algo meio épico, como a música do filme Exodus…
A coluna começa a se deslocar seguindo o curso do rio Mekong, são oito combatentes. (O comandante se chama Maurício, estranho…) E então acontece: inimigos emboscados, há troca de tiros, ele é atingido.
(E se produz o impasse que encerra o segundo ato e abre para o ato final.)
Os vietcongs estão indecisos. Logo chegarão reforços para o inimigo e a coluna será dizimada, se não escapar a tempo. Mas não se atrevem a deixar o novo companheiro para trás… Aí Bicho-grilo grita:
– Não se detenham, sigam em frente, é a minha vontade! Joguem meu corpo no rio Araguaia!
E Nô fica me olhando detidamente, como que esperando que eu diga algo.
– Ué, não é pra ser o rio Mekong? – pergunto.
– A transição para o último ato é um corte brusco na lógica do enredo, que mostra a contraposição dos planos psíquico e real, com que trabalha o genzai nô – ela explica. Tudo até ali, a viagem ao Oriente, o encontro com os vietnamitas, tudo foi um sonho… Bicho-grilo acorda, despertado pela própria voz que gritou. Lentamente as imagens do sonho vão cedendo lugar ao que realmente havia sucedido. (Aqui o coro deve cantar, ilustrando o episódio, vou copiando o texto pra pôr música.)
Os agentes caçadores de gente
Manobram na escuridão
Comandados pela velha serpente
Que antigamente tinha o nome de Cão
Veio a ordem do alto comando
De onde vem todo esse invento
É chegado o momento
De entrar em ação
Ao som do grilo da terra
Entram em confabulação
O capitão motosserra
E o coronel do porão
Os cachorros farejam as pistas recentes
Dos reféns da turvação
Aqueles jovens tão crentes
Vão cair no alçapão…
Prá que dar voz de prisão?
Melhor é não deixar sobreviventes…
Em pouco se consuma a ação
São duzentos armados até os dentes
Contra oito na ilusão…
– Eu escrevi na pressa, durante a noite – me interrompe Nô. Não gosto muito do final, é pessimista, vou ver se bolo algo melhor. E ainda falta um pedaço. Mas por enquanto vamos trabalhar com isso mesmo. Aqui a música tem que ter um ritmo lento e pesado, algo assim como uma sucuri rastejando para engolir a presa.