Quando eu era guri, gostava de subir com o dedo no mapa, do sul até os confins da pororoca e do peixe-elétrico.
Agora avanço paralelo à Linha de Tordesilhas, penetrando no ventre da floresta parideira de cobras, pressentindo as raízes apodrecendo nos igapós e os rios cansados inchando as barrancas gosmentas…
De repente saiu uma ema lá de dentro, correu atarantada pela estrada e voltou a embarafustar-se na mata. De tanto em tanto, brilham fogos no escuro. É uma estrada sem curvas, como um túnel de poeira. De quando em quando aparece um veículo em direção contrária, que apenas se adivinha por uma luminosidade maior na bruma silicosa. Sempre em linha reta, o ônibus sobe uma ladeira empinada, emerge da poeira como que para respirar ar puro e lá do alto mergulha de volta no túnel, logo ascende novamente e assim vai, nesse tobogã de areia em suspensão. Enquanto escrevo neste caderno, percebo que a poeira vermelha foi se intrometendo entre as palavras. E aí vai ficar para sempre, nunca vou limpar.
A meu ver, Belle Époque é uma expressão intraduzível. Tem de ser em francês mesmo, dita em outra língua ela perde imediatamente a luminosidade dourada, que amalgama as duas palavras num significado bem maior do que um certo período histórico. Se me perguntam quando foi, não sei exatamente. Mas sei dizer o que acho que foi, com detalhes. Por exemplo: foi quando a linha curva mandava, a ortogonalidade era subalterna; o ar estava sempre inebriado de perfumes de mulher; havia mesinhas redondas de cafés ao ar livre em Paris, Viena e Berlim; e música de violinos, inclusive no Mangue do Rio de Janeiro. Isso e outras coisas mais contém a poeira cósmica dourada que irradia Belle Époque.
Com o livro de Proust nos joelhos, era mais ou menos isso que eu estava mentalizando, quando a estrada vermelha nos vomitou, o ônibus suavizou a marcha, flexionou algo à esquerda e pouco depois parou em frente a uma construção nova e bem achatada, em cujo frontispício se lia: Terminal Rodoviário Engenheiro Hildegardo…
Saí caminhando, não havia uma árvore pra defender do sol, e não havia um tostão no meu bolso, quando cruzei por uma carrocinha de sorvete. Depois de muitas voltas, perguntando aqui e ali, cheguei numa casa de estudantes, na Travessa São Francisco. Tem uma sala de recreação, onde durmo no chão e os moradores vão até bem tarde, aferrados no ping-pong e na televisão. Tomei um banho e sai pra conseguir comida.
Quando me perguntam onde eu arranjo a grana para ir assim, por este mundo velho sem porteira, eu conto umas histórias… Tipo assim, que eu paro um tempo num lugar, consigo um emprego, junto uma nota e depois vou novamente pra estrada. Mas só pra ti, querido diário, vou contar como é de fato…
Teve um poeta lá do sul que estrangulou uma cobra enorme com um laço de fita, depois entrou no couro da bicha e saiu a correr mundo. Pois a minha Cobra Grande tem duas partes: o violão é a minha vanguarda, a retaguarda é minha carteirinha de aspirante a oficial R/2 do exército. (Também posso gargantear que meu anjo da guarda não dorme de touca nem vai a baile de cobra sem perneira…)
Consegui oito dias de comida, na Polícia Estadual, por obra e graça do Chefe da Casa Militar, coronel Bahia. Fui lá no Palácio, dá uns três quilômetros de caminhada, lá para o lado de Cremação. Havia um corredor comprido com bancos de madeira, muita gente querendo ser atendida, no fundo o coronel em sua escrivaninha. Quando chegou a minha vez, no mesmo instante em que levantei, um rapaz caiu se estrebuchando no chão, em convulsões espumantes. Em meio à expectativa geral, o coronel Bahia se aproximou para ver melhor a alteração e comandou enérgico:
– “Ninguém toca nele, é epilético!”
Depois voltou à escrivaninha e fez um sinal me chamando. Tá de dentro bixo, aqui cê não vai passar fome: se não tiver pato no tucupi, tem manga com farinha. Aliás, a farinha d’água é bem um biscoito, se dissolve gostosa na boca.
Você anda por aí… No semi-círculo da cidade velha, com seus sobrados antigos.Tem o Forte do Castelo, o Convento e a Catedral… E lá está o Bosque e o Museu Goeldi, onde se erguem as amostras imponentes da flora amazônica, o guaraná, o açaí, o cupuaçu, o bacurí. E lá dentro você finalmente fica conhecendo a bicharada incrível das matas, aquelas figurinhas difíceis do álbum…
Mas a glória de Belém é o Ver-o-Peso, com seu mercado de quatro torres góticas espetando o céu azul. E as suas vendedoras de mandingas e simpatias. E os artigos feitos com pele de cobra e jacaré, os chaveiros de cabeça de piranha, os amuletos de olho-de-boto. Lá tem aqueles peixes incríveis, aquelas montanhas de caranguejos em cestos, peças de cerâmica, os temperos e as ervas perfumadas, as frutas em todas as cores e sabores. Os papagaios, as araras, os macacos… E as paredes art-nouveau…
O Mercado da Carne, com seu estilo neo-clássico importado de Glasgow, está vedado por grades, no alto. É proibido urubu. Imagina a tortura psicológica com os pobres bichos. Eles ficam por ali na doca, ciscando tristes no lodo atrás de algum caranguejo extraviado, quando a maré vaza. E pousam naquele poste ou mastro, com o olhar distante, voltado para o Mercado. E clamam aos céus, abrindo as asas em leque, enquanto o vento Marajó enfuna as velas azuis, encarnadas e verdes da infinidade de barquinhos de madeira, que trazem mais peixe.
Embarcando e desembarcando grandes blocos de gelo.
Belém, Belém, nortista gostosa, eu te quero bem.