Mammy Blue. É impossível não aprender essa música, mesmo que não queira, o rádio toca e toca, em todo lado. Tava no Parque Kennedy fazendo um som, veio um rapaz chamado Cré e me pediu pra tocar o Mammy Blue. Depois me trouxe pra casa dele, mora com a mãe viúva e o irmão Laerte, da janela da casa se avista a baía do Guajará. A mãe gosta de ler, tem livros do Gerhard Hauptmann. Do pai tem um retrato pendurado na parede, Laerte se parece com ele. O Cré saiu mais como a mãe. A casa ampla é o que resta da antiga riqueza da família, de um barão da borracha.
Estamos bem aqui, no assoalho da sala de ping-pong. Quando cessam os ruídos da televisão e o pipoquear da bolinha, a gente apaga a luz e dorme. Há sempre mochileiros chegando ou partindo. No momento compartem a sala comigo dois franceses, a Meg e outro americano, mais o argentino Totó com suas duas garotas goianas que fazem artesania. E os dois paulistas, que acabam de chegar da Ilha do Bananal e já estão olhando o mapa: querem ir para uma pequena ilha no estuário do Amazonas. Aliás, são os únicos que não estão querendo ir para Manaus.
Ontem à noite dois moradores da casa ofereceram um quarto para as meninas goianas dormir, elas gostaram. Só que lá pelas tantas eles entraram no quarto e queriam transar com elas na marra. Eu estava escrevendo na sala onde elas costumam fazer os trabalhos de artesanato. Aí entraram as duas correndo e rindo nervosas, fugindo dos caras.
Ando daqui pra lá, e de lá pra acolá nas docas e na capitania dos portos, tentando conseguir carona num barco para Santarém ou outro lugar neste rumo. Não está fácil. Mas um dono de barco prometeu me levar até Breves, que fica a um dia de viagem. Na capitania dos portos conheci a Suelene, me deu seu endereço, marcamos encontro às seis da tarde na casa dela, ela mora para lá da Base Aérea. O ônibus foi por uma estrada de terra e me deixou em um lugar onde todo mundo vive em casas de barro, como ela. Sua casinha tem três peças pequenas.
No interior, totalmente desmobiliado, não existe mais do que uma máquina de costura, um banquinho de madeira e duas redes, ela diz que se mudou há pouco para ali. Não há luz elétrica. Não há água encanada. Só na terceira peça, a dos fundos que comunica com o quintal, há uma arca com um pote d’água. E algumas plantas. No quintal, um cercado de folhagens secas é o banheiro. Ela passou com uma toalha e um candeeiro, para se banhar com uma bacia no escuro do quintal. O lugar se chama Icoaraci e Suelene me conta que ali morreu muita gente, na revolta da Cabanagem. E onde hoje é a estrada de terra, no passado era um ramal da estrada de ferro, que ligava Belém a Bragança.
Hoje apareceu um alemão muito louco aqui na casa. É vermelho de pele e cabelo (bem penteado), usa óculos e veste sempre traje e borboleta, já bem maltratados. E chinelos de dedo, porque roubaram-lhe os sapatos. Traz um saquinho de viagem, com algumas poucas coisas, só isso. Dorme também no assoalho cheio de formigas, mas nas vezes em que se arma algum papo coletivo, sobre política ou coisa parecida, ele fica na retranca, apesar de falar perfeitamente inglês. Suspeito que é assim, porque no meio de americanos, franceses e tal ele encarna o vilão da história…
É fim-de-semana, os estudantes foram pros seus lares e a sala ficou silenciosa, aproveitei para fazer um som. Depois o Yves me pediu o violão e cantou uma canção francesa muito bonita, que é a carta de um desertor, que se recusa a ir para a guerra. Eu aplaudi e pedi que cantasse outras, mas ele só sabia essa.
Chegaram os outros e rolou um papo sobre a guerra do Vietnã, a Meg Larfan contou uns lances que ela viveu no movimento pacifista, em Nova York. Ela usa óculos e tem uma juba enorme e encaracolada, é do tipo intelectual. Já conversamos bastante e ela me deu o endereço da comunidade onde vive, Queens New Youth ou coisa parecida, está anotado no caderno. Não está nos meus planos, mas nunca se sabe pra onde o vento vai nos empurrar…
Se no caso da palavra exdrúxulo o verbo se fizesse carne, teríamos o Gerd pela frente. Apesar do seu mau português, está sempre brincando com as pessoas, pela rua. Ele ri sozinho e tem tiques. Contou que está há vários meses nestas latitudes. Veio trabalhando em um navio e ao chegar aqui deu o pinote. Antes esteve em outras terras, está há quase dois anos correndo mundo, desde que se graduou em Engenharia de Máquinas, na Alemanha. Adora contar sobre as viagens e diz que foi companheiro do Rudi Dutschke, o líder estudantil que foi baleado na cabeça por um ultra-direitista. Ele quer escrever uma novela. Sobre a vida de um homem que, sendo filho de missionários alemães, foi raptado pelos índios quando pequeno e cresceu com eles, no interior da floresta, falando apenas a língua deles. Mas antes quer continuar viajando um tempo.
– Just looking around – ele diz.
Sentado em um banco no quartel da Polícia, esperando a hora do jantar. Andei pelas docas com o alemão, à procura de um barco para Macapá. De lá ele quer seguir até o Pacífico, via Caiena, Paramaribo, Georgetown…
Estávamos nessas quando apareceu entrando no porto um navio germânico, o que deixou Gerd ainda mais elétrico. Porque in the german ships ele consegue o que quiser. Come, bebe, ganha cigarros, dinheiro e tudo mais. O problema é que não o deixaram entrar no cais. Porque existe uma lei que só permite a entrada de estrangeiros com uma ordem expressa da capitania. Aí ele foi conseguir a tal ordem e eu me mandei.
Jantei e saí caminhando pela avenida Alcindo Cacela, até a praça Princesa Isabel. Tinha combinado me encontrar com Gerd no Palácio, uma casa noturna erguida com palafitas sobre o rio Guamá, no bairro da Condor. Quando cheguei lá, ele já estava sentado com sua cerveja e um ar muito satisfeito. Mandou vir um chope pra mim e contou como tinha sido a coleta no navio alemão, ele faturou uma boa grana.
A princípio o lugar estava quase vazio, mas foi se enchendo com o passar das horas. Lá pela meia-noite apareceu o Laerte e veio sentar com a gente. Laerte é muito popular por aqui. É amigo do dono do cabaré.
– Muitos vão à igreja, mas meu lugar sagrado é o Palácio, aqui é a minha segunda casa – ele explica.
(No rio Guamá aterrizavam os hidroaviões, quando Belém ainda não possuía aeroporto. O nome do bairro veio da empresa de aviação Condor.)