“Os Últimos Dias de Carlos Gomes”, de Domenico De Angelis e Giovanni Capranesi (1899)
Peguei minhas tralhas e me toquei pro Porto do Sal, uma das docas de Belém, o alemão veio junto. Chegando lá o dono do barco que prometeu me levar a Breves nos encaminhou ao porto Sabá-Lusa, outra doca, de onde o barco Vitória nos levaria a Santarém. Assegurou-nos que já havia combinado tudo com o dono da embarcação, um amigo dele. Fomos a toda pressa para lá, vasculhamos as palafitas até cansar, mas não encontramos nenhum barco com esse nome. Aí tivemos que voltar com tudo, para a sala de ping-pong.
(E agora estou escrevendo numa mesinha de aeroporto, na FAB, esperando pra falar com o tenente Mauroak. Pra ver se descolo uma carona de avião.)
Ontem marquei encontro com a Demiana, uma gata de cabelos pretos lisos e tez quase transparente. Seria às 8:30 da noite, mas saí bem cedo, pouco depois da chuva das seis. A chuva da tarde é um divisor de águas da vida em Belém: o dia de trabalho vai até cair a chuva, depois é o prazer. O ar fica muito leve e agradável, dá vontade de perambular. Foi o que eu fiz, rumando em direção à praça da República. Indo por uma rua, li o nome na tabuleta: Carlos Gomes. Ceci beijou Peri, Peri também beijou Ceci…
Foi anoitecendo e pouco a pouco, como cogumelos que brotam do chão, jovens prostitutas foram aparecendo, estrategicamente postadas sob as majestosas mangueiras. Rainha Luzia, onde está sua filha, quero me casar…
O encontro com a Demiana seria ao lado do cinema Olympia. Era muito cedo, e eu entrei numa de ficar olhando as coisas e as pessoas que passavam por mim. E fui atraído por uma lojinha de aspecto mais antigo, vende animais de todo tipo, empalhados. O dono é um senhor de cabelos brancos, olhar muito sério, como que desiludido, engenheiro aposentado, se chama Rui Gaitonde. Mas quando perguntei se tinha muiraquitã pra vender, meio que surgiu um sorriso. E começou um papo que se estendeu noite adentro. É claro, a Demiana deve ter riscado meu nome do seu caderninho.
– Você é de onde? – Rui quis saber. Falei que era gaúcho, nascido em Montenegro.
– Montenegro…, ele falou baixando o olhar, como que entrando num túnel do tempo.
Ainda estava o imperador D. Pedro II, quando começaram a construir a Estrada de Ferro de Bragança, mas só foi inaugurada no começo deste século, pelo então governador Augusto Montenegro. Rui era menino, morava com os pais numa casinha de taipa, em Igarapé – Açu. Quando vinha a Maria-Fumaça, era uma aparição do outro mundo, cheia de som e alegria. Quando ela partia, o silêncio doía… Mais tarde, depois de se formar engenheiro, Rui trabalhou um tempo na ferrovia. Nada mais existe daquilo. O primeiro governo militar mandou arrancar os trilhos e destruir as locomotivas, quatro anos após ser concluída a conexão da ferrovia com o porto de Belém. Como vingança política de um dos seus chefes. Falar dos tempos passados o transforma, é como abrir uma represa, sai uma história atrás da outra.
Fechando a portinha da loja, Rui Gaitonde olhou pro violão que eu tinha encostado na parede e perguntou se eu sabia tocar tangos. Peguei o instrumento e toquei alguns acordes ao léu, para ver se estava afinado, enquanto rebuscava na memória, atrás de um tango. E comecei a dedilhar um trecho do Viejo Almacen, mas ele me interrompeu.
– Ué, isso que você começou a tocar parece da Protofonia…
– Hã?
– O começo de O Guarani. Sempre toca na Voz do Brasil…
– Ah, eu sei. Só que foi um acaso, foi sem querer. Mas eu sei uma música do Carlos Gomes, falei começando a dedilhar. E toquei aquela modinha que aprendi de uma guria que morava no Bonfim, numa festinha do coral da OSPA, em Porto Alegre.
Tão longe, de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento…
– Este é um país que despreza a cultura, você que quer viver como artista, é bom que tenha consciência disso – ele resmungou. A cultura brasileira tem um inimigo interno, e ele não permite que aqui se faça grande coisa. Este país é um paraíso, visto de fora. Mas aqui é uma das sucursais do inferno…
Desde 1870 Carlos Gomes era um compositor aclamado na Europa e aqui pouca gente sabia que ele existia, fora o imperador e seu pequeno círculo. Veio a república e juntou a ignorância com o desprezo. Em 1922 a comunidade italiana em São Paulo quis homenagear o centenário da independência, mandou vir de Roma um escultor que criou um conjunto sobre motivos das óperas de Carlos Gomes, inclusive o busto com a cabeça do compositor, para a praça Ramos de Azevedo, junto ao Theatro Municipal. Mas quando Mascagni – autor da famosa Cavalleria Rusticana – veio ao Brasil, foi visitar o monumento e se espantou, pois a cabeça que lá estava não era a do seu amigo. Tinham colocado como autor do Il Guaraní a cabeça de um general, figura saliente da política. Mascagni indignado se dirigiu ao governador Washington Luís, e só graças ao protesto desse italiano temos hoje a cabeça verdadeira.
O engenheiro sugeriu um passeio, queria me mostrar alguns lugares. Fomos saindo, sem interromper o papo.
– Belém criou um laço forte com o mais caipora dos caipiras, desde a encenação das suas óperas no Theatro da Paz. Ao longo dos anos o maestro havia tentado conseguir um posto de trabalho que lhe permitisse viver em seu país, mas fora tudo em vão. “No Rio não me querem nem para porteiro de conservatório”, se queixava. Perto do final, doente e depressivo, endividado até a medula, mulher e filhos morrendo um depois do outro, o governador Lauro Sodré cria o Conservatório de Música de Belém, para ajudá-lo. E alguns meses depois Carlos Gomes vem assumir a direção. E alguns meses depois ele morre do cancro maligno na boca. Morreu só, num leito sujo dos vômitos e das golfadas de sangue. Mas para a posteridade foi providenciada a pintura Últimos dias de Carlos Gomes, com sua bela morte, cercada do amparo das autoridades civis, militares e eclesiásticas…