Nélida Piñon (Fonte: G1)
Nélida Piñon deixou-nos há pouco mais de dez dias. Ela viveu de 1937 a 17 de dezembro de 2022, foi uma escritora brasileira com nacionalidade também espanhola; ocupou a cadeira número trinta como membro da Academia Brasileira de Letras, foi a primeira mulher que chegou a ser presidenta da mesma Academia, em 1996; participou da Academia Real de Espanha e da Academia Mexicana, em 2003 foi distinguida pelo Prêmio Internacional Menéndez Pelayo, em 2005, recebeu o Prêmio Jabuti, no Brasil, e ainda no ano de 2005 obteve o prêmio Príncipe de Astúrias, de Espanha, pelo conjunto de sua obra; esse galardão é outorgado pelo príncipe herdeiro de Espanha com o objetivo de honrar o trabalho cultural, científico, social e humano de autores ou instituições que enobrecem a humanidade.
Já em 2007, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Autônoma do México, por sua “atuação em defesa das artes, da ciência, das letras e do melhor entendimento entre os povos”. Nélida também ocupou o cargo de editora e membro do conselho editorial de várias revistas no Brasil e no exterior, e ainda participava do conselho consultivo de diversas entidades culturais em nosso país.
A autora nasceu no Rio de Janeiro, mas seus pais e seus avós eram galegos, oriundos da região de Galiza – habitualmente chamada de Galícia, pelos brasileiros – localizada no extremo noroeste de Espanha, na fronteira norte de Portugal. Devido a esta ascendência, Nélida sempre foi muito apegada à Espanha e a toda a região próxima, fato que se destaca em sua escrita: suas obras expressam extraordinária convergência de personagens que se questionam sobre sua identidade e que, para não se resignarem à tristeza do “desterro”, resgatam suas histórias para compreender-se e unir-se ao passado afetivo.
Seu primeiro romance, “Guia-mapa de Gabriel Arcanjo”, foi publicado em 1961, a seguir, editou muitos contos e outros romances, publicou igualmente obras com textos biográficos e ainda ensaios diversos, no total de aproximadamente cinquenta textos. Sua obra-prima é, sem dúvida alguma, o romance intitulado “A República dos sonhos”, de 1984; ele trata exatamente de quando seus pais e avós emigram de Galiza para o Brasil, e de todas as situações que eles viveram. A propósito, desde a edição desse livro, suas obras têm sido traduzidas ou editadas em diversos países, em mais de vinte idiomas. Iniciamos, então, nossa análise de “A República dos sonhos”.
A obra literária de Nélida Piñon assenta-se sobre três pilares fundamentais: seu país de nascimento, suas origens espanholas e a escrita em si. Brasil e Espanha conformam os dois polos geográficos entre os quais se desenvolve a visão do mundo em geral, expressa pela autora. Ela nos informa que “Desde a mais tenra infância senti os efeitos da dupla cultura (…) estou destinada a reivindicar o mundo desde um ponto de vista duplo”. Quanto à literatura em particular, Nélida desvenda que para ela, escrever é o seu modo de se relacionar com o mundo, além de ser o instrumento que lhe permite explicar a si mesma.
Em seu livro “A República dos Sonhos”, Piñon analisa os sonhos dos que vieram para o Brasil, detém-se particularmente sobre seus personagens emigrantes e reflete sobre a dor que implica o abandono do país de origem. “Madruga” é o personagem central do romance: ele aproxima-se da descrição de “um batalhador, audaz ou espertalhão”; um trabalhador persistente, sem dar importância às adversidades, empenha-se em prosperar financeira e socialmente com o propósito de “ganhar a América”.
Como imigrante da Espanha, chega ao Brasil sem nada; então, não há o que perder, toda conquista deverá levá-lo, necessariamente, a um ganho. Sacrifica-se por um objetivo maior, o de enriquecer e, depois de atingido o objetivo, não encontra felicidade pois, ao construir riqueza material, não teve tempo para seu crescimento humano nem habilidade para harmonizar os sentimentos. Após o enriquecimento, com uma vida mais tranquila, a consciência amarga surge para ele e sua esposa, na medida em que se vão sentindo órfãos, não somente dos familiares, mas também da terra natal e de seus costumes originais, o que os coloca distantes uns dos outros. Assim, passam a viver de forma controversa: residindo no Brasil, sentem-se mais próximos da Galiza.
Se ao chegar ao Brasil, Madruga estava cheio de autoconfiança, o mesmo não ocorre anos mais tarde, após seu lento estabelecimento em terra estrangeira. A falta de realização pessoal no plano afetivo veio de encontro à conquista financeira, ou seja, “ganhar a América” não repercutiu em felicidade familiar, gerando, assim, uma crise de identidade. Diante da crise, Madruga repensa sobre seu passado e, na tentativa de resgatá-lo, volta-se para a arte de contar histórias, tão cara ao seu avô e aos seus conterrâneos (e ousamos afirmar, tão essencial também para a realização pessoal da autora).
Assim, o personagem transforma-se em guardião de uma tradição oral ancorada nos contos e lendas da Galiza; dos dois lados do Atlântico desenrola-se esta saga familiar, com vozes que se respondem apesar do mar e do passar do tempo; gerações passadas e presentes dialogam em um grande romance, no qual nada, ou quase nada, acontece. Nélida Piñón recorre obviamente às próprias experiências para recolher os elementos dessa saga familiar que percorre várias décadas. A ascensão social provoca um certo retrocesso, a uma busca de raízes e origens. “A palavra é a alma da existência”; daí aqueles estranhos diálogos que se confundem com a narração. “A República dos Sonhos” é a junção de várias histórias de diferentes narradores, que acabam se fundindo em uma só voz.
A aventura banal do emigrante torna-se uma epopéia coletiva, a de uma das comunidades que compõem a confusão multicultural que é o Brasil; o épico se passa em uma atmosfera de violência surda, toda guerra dentro do clã, mesmo quando termina em morte, resulta em um novo nascimento. Para finalizar, ressaltamos que Nélida Piñón é uma escritora prolífica, dona de um discurso ao mesmo tempo tímido, recolhido em si mesmo, mas igualmente amplo e inteligente a tal ponto que a autora nos faz escutar segredos familiares transformados em apelos sociais heroicos e chamadas ao devaneio. Vale muito a pena lermos os textos de Nélida, ela pode ser considerada como uma das mais importantes vozes femininas da República Brasileira das Letras.