Dos dois conceitos de tempo da cultura grega clássica, um é Cronos (Saturno para os romanos), o tempo cuantitativo, medido pelos relógios, pelos calendários. É o deus tenebroso que engendra filhos para em seguida devorá-los vivos… O tempo que vai a cada instante devorando nossa existência… Que nos injeta a noção (noção falsa, como a física contemporânea mostrou) de que a vida está solidamente organizada, tudo bem medido, com um passado imutável e um futuro imponderável se aproximando…
O outro conceito de tempo é Kairos, que tem a ver com a qualidade do tempo. Se a gente se propõe realizar algo importante, existe sempre um momento adequado e oportuno para isso, que não é possível antecipar ou controlar e não se repete, nos sobrevoa. Isso tem a ver com Kairos. (Já o escritor Câmara Cascudo, em Natal ele me falou sobre a ação mágica do tempo sobre todas as coisas, centro do seu interesse pelo passado…)
Sem dúvida o encontro com o engenheiro Rui Gaitonde foi marcado por aquela satúrnica sombra devoradora, no saudosismo dele. Especialmente ao falar do ciclo da borracha, quando Belém e Manaus eram as cidades mais desenvolvidas do país. Foi no final do império, a Amazônia detinha 40% do total das exportações brasileiras. A moeda da borracha era a libra esterlina, era a que circulava aqui, onde a renda per capita era duas vezes maior que em São Paulo ou Rio de Janeiro. Manaus era a capital mundial da venda de diamantes. Por aqui já havia sistema de água encanada, esgotos e luz elétrica, quando no Sudeste ainda era na base do lampião de gás. E os barões da borracha enriquecidos passaram a trazer modas e costumes da Europa para cá… Com o tempo essa Belle Époque se esfumou, sobraram alguns poucos restos.
– Não gosto do jeito que as coisas vão caminhando – Rui se queixou, acendendo um cigarro. Me sinto como um exilado em sua própria terra. Ali na minha lojinha, dia por dia, tenho a impressão de estar vivendo em um grande navio que naufragou e vai aos poucos se desmanchando…
Já para mim, nos meus vinte e poucos anos, escutando as histórias, vendo as mangueiras enormes com as mulheres embaixo, o Grande Hotel e o Theatro da Paz, não havia espaço para melancolias saturnais, tudo era Kairos. Mas de repente a noite me pareceu um mar escuro, e senti que fui descendo, como no redemoinho do marinheiro Procópio… Sim, estava no centro do redemoinho e ao meu redor pululavam destroços e adejavam os fantasmas dos tempos passados. Me deu uma tontura e falei qualquer coisa, pra me livrar da alucinação.
– Mas venha cá, foi esse o período da SEMTA, dos soldados da borracha? – perguntei, lembrando dos papos com Lourival em Chapadinha, enquanto cruzávamos a avenida.
– Não, isso foi depois, na segunda guerra mundial. O boom da borracha foi até a primeira guerra, aí os ingleses contrabandearam sementes da Amazônia e plantaram seringueiras no Ceilão, Malásia e África. Depois, na segunda guerra mundial os japoneses ocuparam os seringais da Ásia. E os aliados ficaram sem e tiveram que recorrer à Amazônia.
(Descolei o livro Em busca do tempo perdido na casa de um sacerdote, que Deus me perdoe. Agora, aqui nesta mesinha do aeroporto me pergunto: estou em busca do tempo perdido? Em parte sim, mas só em parte, a parte estética. Estou em busca do tempo vindouro? Não, este virá de qualquer maneira, não estou atrás dele. Então só resta o tempo de agora, em que estou esperando o tenente Mauroak, que me dirá se vou ou não voar pela FAB…)
Não deu em nada o lance da FAB, esperei duas horas até que veio um rapaz me dizer que o tenente Mauroak se encontrava em uma reunião e não poderia me receber. Saí do aeroporto realmente cabisbaixo. Em Belém você não pode sair caminhando e pedindo carona. Ou você consegue um barco ou um avião, como eu tinha tentado. A roda da fortuna não tinha me ajudado. Mas no dia seguinte ela me trouxe novidades. O Lauro Sodré ajeitou as coisas, para que o Carlos Gomes pudesse voltar e morrer por aqui. E o Laerte ajeitou as coisas para que eu viajasse infiltrado no barco Lauro Sodré…
Eu tinha ido na Capitania dos Portos para novamente batalhar alguma carona de barco, Manaus ou outro lugar. Aproveitei e passei na ENASA, para falar com o Laerte. Coincidiu que era seu último dia por lá, ele tinha sido dispensado e estava recebendo a indenização. Dali fomos direto para o Pagode, um bar que fica em Cremação, veio junto o J.A.P., que é diretor comercial da empresa. Os dois são muito amigos e tomando cerveja, relembraram os velhos tempos. Laerte contou alguns lances da sua vida de gigolô, ele agora está casado e com filho. Mas não abre mão dos “rabichos”, diz. No meio da conversa veio um homem magro de paletó e gravata, Laerte levantou e se abraçaram.
– Palito velho de guerra… (Gerd tinha me falado de um tal de “Palito”, que arranja garotas de programa …)
Eu estava ali sem dar palpite, só escutando, mas o Laerte começou a falar de mim e explicou ao amigo diretor, que eu estava querendo ir à Manaus. Aí o cara me olhou, deu um tempo e depois falou.
– Vai sair um navio da Frota Branca para Manaus, com turistas e passageiros comuns, mas leva também uma turma de estudantes de engenharia, da Operação Mauá. Eu posso incluir seu nome na lista e você fica incorporado na operação. Isso lhe garante embarcar e receber comida. Só que o resto é com você, o navio está superlotado. Na terceira classe você pode se enfiar, mas tenho que lhe avisar: as condições são sub-humanas.