O Lauro Sodré é um navio de casco metálico branco, com setenta metros de comprimento por uns doze metros de boca. Foi fabricado na Holanda, possui dois motores e duas hélices de bronze.
Quando entrei no navio, já estavam embarcados os passageiros de primeira e segunda classe, mas a turma de estudantes ainda não tinha chegado. Fui entrando distraído, ninguém apareceu pra me identificar. Me sentei no salão vazio da coberta inferior, encostado numa parede, de onde via as águas amazônicas bem de perto, pareciam absurdamente domésticas. Mas nem bem havia acomodado o violão e a mochila, quando começaram a entrar passageiros com suas bagagens, alguns até com animais, que em pouco tempo ocuparam todo o espaço disponível. Quando me dei conta estava encurralado num canto por uma multidão de pessoas que se comprimiam e tagarelavam numa algazarra indescritível, se esticando nas redes que se sobrepunham e se cruzavam em todas as direções imagináveis.
Aguentei um tempo ali, mas depois me levantei e fui saindo de fininho, em busca de um lugar mais aprazível. Percebi dois magrinhos com cara de estudantes subindo uma escada estreita, fui atrás deles.
A escada, localizada junto aos sanitários na terça parte do comprimento do navio, atravessava os andares superiores e foi desembocar no convés. Lá estavam os universitários da operação – a maioria rapazes, algumas garotas -, empenhados em abrir espaço para atar as redes, afastando as mesinhas redondas do bar contíguo à cabine de comando. Então, com todos os passageiros já embarcados, o navio não partia. Alguém falou que a demora era porque estavam trocando a bucha do eixo da hélice. Me instalei no convés junto à um dos botes de emergência, desenrolei o saco de dormir e fiquei na minha, respirando a brisa da baía do Guajará.
Aí deu vontade de tocar, e o ar úmido da noite intumescia os sons do violão, beleza.
Estava tocando Michelle dos Beatles e vieram sentar perto o Zuenir e o Mike, que eu naturalmente não conhecia, mas cheirei a pinga dos seus copos. No meio da música vi assomar da escada o comandante, se chama Zeca Guimarães, como fiquei sabendo. Ele se enfiou com um subalterno na cabine de comando e pouco depois o barco partia.
Dia vinte, às vinte e duas horas.
Zuenir é de Natal, estuda engenharia em Belém e todo mundo chama ele de Carcará. Realmente, a expressão do seu rosto tem algo de ave de rapina. Mas a origem do apelido vem mesmo é de um talento que ele me revelou mais tarde, sob a luz ofuscante do sol. Ele imita com perfeição o gargarejo daquele pássaro, quando canta lançando a cabeça para trás.
Mike é inglês, passou três anos na Antártica fazendo medições do campo gravitacional e magnético da Terra. O maior problema lá era a falta de mulher, me confessou.
Acordei com o canto de um galo lá em baixo. Me sentei no saco de dormir e enquanto estremunhava, a imaginação me fez descer do convés ao porão, embarafustando pelo torvelinho das redes dos passageiros da terceira classe. Onde diabos pode um galo encontrar lugar neste formigueiro, para ficar de pé, abrir o peito e anunciar o novo dia? Só se ele consegue cantar deitado, enfiado numa sacola…
Não, não era assim, era de uma diminuta ilha lá fora, o barco estava passando a pouca distância. Parecia um cesto de verdureiro, uma caixa contendo todo o tipo de plantas verdes e seringueiras, carnaúbas, palmeira açaí…
Contornando o sul da Ilha de Marajó, fomos passando por um sem-número de pequenos pedaços de terra desses, aflorando à superfície das águas barrentas. Ainda não descobria um lugar adequado para um galo cantar, mas o navio avançou e apareceu entre as árvores uma casinha pairando sobre o rio, no débil equilíbrio das palafitas.
Aí um vozerio feito de exclamações e risos me puxou para as balaustradas de estibordo. Eram passageiros se divertindo, jogando roupas, sapatos e dinheiro para a superfície das águas, onde dezenas de canoas estavam à espera, no balanço das ondas. Lá adiante uma camisa que alguém jogou passou despercebida e o rio foi levando, mas rápida uma canoa se deslocou chacoalhando perigosamente, no encalço da dádiva. Esse é o contato que têm os ribeirinhos com a civilização, o resto para eles é água e mata.
Estou escrevendo enquanto espero a vez de entrar no refeitório, para pegar o café da manhã, no segundo andar. O salão é agradável, com cadeiras de almofadas muito confortáveis, mas não comporta todo mundo, é preciso entrar na fila do próximo grupo e esperar. Ao todo são três grupos, vai até as oito horas. Café com leite, pão e manteiga. O pão é feito na cozinha, na terceira classe, de madrugada. Depois do café estamos todos no bar, conversando, olhando mapas. A manhã vai envelhecendo, muitos se põem a ler ou a jogar cartas no salão a ré do terceiro andar.
Ao meio-dia o barco parou em Cocal, um pequeno aglomerado de construções de madeira sobre as águas. São cerca de duas dezenas de casinhas, com um depósito de aguardente, um pequeno clube recreativo e um campinho de futebol. Entre as casas passam ruas, são feitas de tábuas frágeis e esburacadas que se apoiam em estacas enterradas na lama. O navio ancorou e pouco depois estava rodeado de canoas do pessoal que pesca, faz cestos, cadeiras e artesanato.
Um cesto com dois quilos de camarão é vendido a dois cruzeiros e cinquenta centavos.
E vendem uns peixes com quatro olhos, bastante comuns no estuário. |
Após o almoço descemos do navio para as palafitas. Caminhamos sobre as tábuas esburacadas até um extremo, em que há uma ponte de madeira fazendo a travessia de um igarapé. No caminho para lá pisei em uma tábua solta, levei um tombo e esfolei as pernas.