Cruzamos a ponte e todo mundo tirou a roupa pra tomar banho no igarapé. Eu estava receoso por causa do sangue dos meus ferimentos, mas me asseguraram que não havia piranhas ali. Na volta para o barco alguns botos escuros surgiram na superfície das águas. (Na turma da operação tem três que são da Guanabara, um deles não para de falar. E de cada três palavras uma é transação, que ele utiliza em qualquer contexto ou assunto, como a pedra filosofal da sua mente.)
A noite já desceu, já jantamos, mas o navio ainda não segue viagem. Estão embarcando sal, sabão, camarão, açaí e outras coisas. E a cachaça Cocal, que não pode faltar…
Ontem antes de dormir conversei com Mike, longamente. Ele é de Birmingham e além da geofísica também faz música. Segundo ele a música inglesa teve dois grandes momentos, o primeiro foi na época de John Dowland, um contemporâneo de Shakespeare. Depois se fez uma estagnação que durou séculos. Com os Beatles deu-se então um novo impulso, que renovou a harmonia, o ritmo e também os textos, na fase final.
Passamos por Breves ao amanhecer, é uma cidadezinha pequena, com sua igrejinha, uma pequena avenida e mangueiras nas ruas. E agora mesmo passamos por uns afluentes muito grandes, que formam uma ilha ao chegar no rio-mar. Depois vou olhar os nomes.
Na verdade não eram afluentes, como eu pensava. Era o estreito de Breves, que está orientado mais para o norte, no seu final afloram inúmeras ilhas. Nas conversas alguém contou que o estreito está cheio de barcos afundados. O naufrágio mais recente se deu numa noite em que uma corveta da marinha abalroou um navio por descuido e o fez ir à pique. Nosso navio seguiu em direção sudoeste, contornando a ilha de Gurupá.
Os viajantes de terceira classe – a esmagadora maioria – não podem permanecer no terraço do convés. Só lhes é permitido subir para comprar algo no bar, devendo retornar em seguida para baixo.
Ainda assim, são possíveis alguns truques. Um amigo novo que fiz aqui, com passagem de terceira, simplesmente subiu com a mochila e esqueceu de voltar pro porão, após a partida do barco. Se perguntam, ele diz que também é da Operação Mauá. Inclusive está pegando a comida com a gente.
A comida dos passageiros de primeira e segunda classe é a mesma, é a que nós comemos, bastante boa. A dos lá de baixo eu não sei. De cima a gente só vê as pessoas com as panelinhas e os pratos metálicos nas mãos. No deck inferior também fica a cozinha.
A passagem na primeira classe – que dá direito aos camarotes confortáveis com banheiros privativos – é seis vezes mais cara que a da terceira classe, onde viaja a maior parte dos 600 passageiros. Nesta última há somente o espaço vazio para os passageiros atarem suas redes e se ajeitarem do jeito que puderem, fica um pouco acima da linha de flutuação e possui algumas aberturas de onde se avistam as águas do rio.
Tem um cara que diz pra todo mundo que foi aeronauta e agora é giramundo. Ele se mete na conversa dos outros e puxa as atenções para si na marra, para ostentar erudição e alta cultura. E estica as palavras difíceis que usa, como se estivesse comendo lagosta e tomando vinhos caros num jantar de ministros do Supremo Tribunal. Seus assuntos prediletos são as várias possibilidades que o mundo tem para se auto-destruir e a vocação de grandeza do nosso país.
Bebericando seu trago ele deu um discurso.
”Com júbilo estou aqui com vocês, jovens amigos, no nosso belo cisne branco, singrando as águas da mais poderosa torrente do planeta. Porém, mais poderosa que esta torrente de água é a torrente que nos une a todos em um só coração, agora que o adormecido gigante despertou e vai para frente. Ninguém pode deter este ímpeto, este milagre que fará desta gloriosa nação o recanto predileto do maior dos taumaturgos, o paraíso abençoado sob as flechas de ouro do disco solar. Em verdade vos digo jovens amigos, nossas luminárias souberam agir a tempo contra a falsa prosopopéia da demagogia. E com braço enérgico debelaram os arautos do caos e da desordem que espalhavam a semente da corrupção. Foram destruídos os tentáculos do inimigo interno, que nos queriam em eterno decúbito. Na minha hermenêutica, são vocês caros jovens da Operação Mauá, o símbolo vivo da força de um país indomável que se ergue e vai pra frente, sob o olhar maravilhado do mundo, que vos contempla.”
E o aeronauta olhou para a esquerda, onde estavam sentadas as duas alemãs, o casal de franceses e os dois japoneses, enquanto erguia seu copo de cerveja para nós.
Agora já estão armando as redes para dormir, no convés. E veio um pessoal me chamar, para ir tocar e beber lá no telhado do barco, sobre a cabine de comando. Tem um gambá cambaleando e se apoiando no semi-circulo de madeira e folha do barzinho, parece que é o aeronauta. A noite se dissolve em alguns goles de cachaça e lufadas de vento, um vento gostoso, enregelando um pouco as estrelas, se é que pode existir este verbo aqui no meio do inferno verde. Depois todos vão para os braços de Morfeu, e eu estendo meu saco e me enfio nele. Saboreando o fluir das águas e a ideia de que vou passar pelos lugares em que Orellana avistou as mulheres guerreiras de um seio só.