O estado da Educação em Portugal tem vindo a agravar-se significativamente, por tomadas de decisão sem visão estratégica, sem avaliação do efeito das políticas em curso, subvalorizando os professores e a sua condição como determinantes do progresso educativo e social.
Valerá a pena introduzir na educação tempos de desaceleração normativa e pedagógica, para debater e refletir esta situação à luz dos novos desafios e questões que o século XXI coloca, para apoiar e abrir outras possibilidades de futuro.
Se quisermos que a mudança ocorra, esta tem de acontecer em primeiro lugar na formação de professores — em termos ambiciosos, definindo um conceito estratégico, um perfil de professor autêntico e um estatuto profissional condigno.
Não se trata de uma questão fácil nem de hoje. Já no século XVI Montaigne afirmava: tratar do modo de instruir e educar parece ser a coisa mais importante e a mais difícil de toda a ciência humana[1], e esta convicção continua pertinente, mais difícil e mais complexa, volvidos tantos anos e controvérsias teóricas e práticas.
Entre os desafios de ontem e os do presente é forçoso reconhecer a enorme distância que os separa. Por um lado, os avanços nas tecnologias digitais em permanente evolução, os progressos notáveis no domínio das ciências, designadamente das neurociências. Por outro, as transformações da vida social, os efeitos da globalização e a construção da sociedade do conhecimento exigem da educação e da pedagogia capacitar os alunos para a sua realização num mundo de mobilidade cada vez maior entre fronteiras, ocupações profissionais e espaços de aprendizagem.
O primeiro desafio está em ensinar todos os alunos, independentemente da sua origem social, do seu ritmo, das suas motivações, preparando-os para agir num contexto global mais diverso e competitivo.
Neste sentido, a questão crítica que os sistemas de educação enfrentam consiste em garantir que todos os jovens frequentem a escola, aprendam e tenham percursos escolares longos e de qualidade e que as escolas e os professores estejam preparados para enfrentar este repto.
Nunca no passado as escolas e os professores enfrentaram semelhante desafio, na medida em que continuam a manter a estrutura organizativa e as lógicas de ensino instituídas em épocas passadas, quando os públicos eram mais limitados e homogéneos e as finalidades da educação menos ambiciosas e mais selectivas.
No passado recente, a missão da escola era alfabetizar, selecionar e educar elites. Os professores não se confrontavam com a exigência de fazer com que todos os alunos concluíssem o percurso escolar. A sua acção centrava-se nos que aprendiam. A exigência do ensino era julgada pelo número dos que reprovavam. O conceito de insucesso escolar não existia. Aceitavam-se as taxas elevadas de insucesso como normais numa longa tradição de reprovações no processo de seleção escolar[2].
Hoje, a visão e a missão históricas da escola adquiriram outras dimensões sociais, políticas e éticas. A escolaridade obrigatória alargou-se. Os objetivos da educação mudaram com a atribuição de novos mandatos sociais e, em consequência, os desafios assumiram níveis mais elevados de exigência quando se tornou imperativo garantir o sucesso de todos e a excelência de cada um. As escolas, os professores e os sistemas educativos passaram a ser considerados tanto melhores, quanto melhores fossem os resultados escolares e o combate ao insucesso escolar um desígnio nacional inscrito em estratégias e programas independentemente da ideologia política no poder.
Embora de natureza diferente, o segundo desafio emerge das novas dimensões do conceito contemporâneo de educação. Educar já não consiste apenas em transmitir à geração seguinte a herança cultural, mas também em criar um espaço seguro, onde as gerações vindouras possam conceber novas formas de pensar e de agir. Em consequência, a missão da escola já não comporta apenas desenvolver saberes para um mundo conhecido. Tem igualmente a missão de formar cidadãos habilitados para um mundo desconhecido.
O desafio que se coloca à educação, aos sistemas de ensino e à pedagogia lato sensu é não confinar as aprendizagens ao que anteriormente SE aprendia, porque os alunos de hoje estão cercados de informação e tecnologias digitais, cujo acesso lhes é familiar.
Em consonância, as políticas educativas contemporâneas definiram como objetivo comum: proporcionar a todos os alunos competências[3] para atingir níveis de excelência em condições de equidade — dando a todos tratamento igual quanto ao acesso, permanência e sucesso no sistema educativo.
Existe a convicção política e socialmente partilhada sobre a exigência de formar cidadãos com competências transdisciplinares e culturais — de natureza social, filosófica, ética, histórica e política — para enfrentar os problemas da vida pessoal e cívica no presente e no futuro. E na sua grande maioria, o discurso internacional sobre as aprendizagens enfatiza as funções económicas da educação, apresentando indicadores sobre os retornos de investimento e o contributo da educação para a formação de “cidadãos produtivos”. Trata-se do reconhecimento de uma cultura científica e tecnocientífica importante, que não poderá constituir-se como único horizonte de um projeto educativo humanista de progresso e desenvolvimento.
Nesta conjuntura, será que um mundo cada vez mais tecnológico poderá ser um mundo cada vez mais humano?
É seguramente indispensável que a educação contemporânea se inscreva no espírito e no desenvolvimento do nosso tempo. Não podemos imaginar o futuro de forma útil sem combinar o nosso conhecimento do passado e a percepção das grandes mudanças em curso. Contudo, admitir essa inscrição não significa que ela deixe de ser contrabalançada pelo acesso a uma cultura multimilenar que passa pelas humanidades, pela literatura, pela história e por um tema que parece indispensável — o conhecimento e a compreensão dos outros.
Por isso, numa abordagem de educação integral a opção entre um saber humanista e um saber-fazer utilitarista não faz sentido. Saber conciliar um e outro em todos os níveis de escolaridade é simultaneamente uma questão essencial e um desafio indeclinável, que implica que a escola se adapte não só às necessidades profissionais ou técnicas, mas também às necessidades de uma sociedade e da sua cultura.
Perante a natureza e a relevância destas mudanças alguns investigadores, designadamente Gerhard de Haan[4] sustentam que uma concepção de educação está a chegar ao fim da sua história. Porém, o problema não reside em reconhecer esta realidade ou até mesmo as exigências do novo conhecimento. A dificuldade está em conciliar a pluralidade de visões do mundo numa abordagem humanista das políticas e práticas educacionais e em definir os meios e os métodos próprios para facilitar as aprendizagens (pedagogia) e lhes conferir um sentido, num contexto mutante e inovador.
No plano pedagógico, a transição da sociedade tradicional para a sociedade de conhecimento traduziu-se na ordem escolar pela adopção de um modelo centrado no acto de aprender em substituição do anterior que era dirigido pelo imperativo de transmitir.
Até ao início deste século, o debate situava-se ainda em torno de dois modelos de ensino: a autoridade do professor, a disciplina e o mérito versus o aluno no centro, a sua inteligência, a sua curiosidade natural, o seu desenvolvimento. Mas, bastou uma década para que a centralidade destas questões diminuísse. A comunidade política internacional passou a interessar-se pela eficácia das políticas educativas e pela importância de métricas comuns, centradas na avaliação das competências dos alunos e no controlo dos resultados escolares. O conhecido programa PISA (Program for International Student Assessment) ocupou o centro do debate e das preocupações dos governos e a atenção dos meios académicos, lembrando nas sucessivas edições a quase todos e aos governos em especial, que é possível atingir melhores resultados na educação[5].
Não obstante os resultados obtidos, o facto é que este espaço simbólico de pressão sobre os sistemas de ensino induziu um sentido de competição contraproducente nas aprendizagens, sem deixar de se considerar ipso facto um desafio. O último desafio resultou da pandemia SARS-COVID 19 e da inopinada ruptura produzida nos percursos escolares. As escolas viram-se subitamente esvaziadas e projectadas para o ensino à distância, sem qualquer preparação prévia. De um dia para o outro, professores, alunos e pais foram confrontados com a perplexidade de uma situação dramática e com a necessidade de adoptar de forma continuada práticas de educação remota. Instalou-se a ideia de que as escolas e os professores poderiam ser substituídos por tecnologias destinadas a transferir conteúdos. E, se por um lado, a tecnologia faz parte do nosso tempo, por outro, a ideia de que tudo vai passar para o digital e de que a inteligência artificial vai mudar as aprendizagens esvazia a relação educativa da sua dimensão humana. Não é possível separar o ser, o sentir e o saber (Damásio, 2020)[6], razão pela qual o digital exige que se cultive a relação humana. Ou seja, o digital não pode substituir os professores.
Em suma, a resposta aos desafios pré e pós-pandemia não se compagina com um regresso ao passado. Historicamente, as pandemias forçaram os humanos a romper com ele e a imaginar um mundo novo. Esta não é diferente. É uma porta de entrada entre um mundo e outro. Perante esta oportunidade a alternativa está em continuar a manter e arrastar as velhas visões e práticas, ou em entrar no caminho aberto, prontos para imaginar outro mundo e conceber outras práticas.
De forma necessariamente simplificada, este dilema corresponde à opção entre duas tendências: a, que valoriza as dimensões individuais, quer através do ensino doméstico, quer pela utilização dos dispositivos digitais, quer ainda no modo como os estudos das neurociências procuram personalizar as aprendizagens. A outra que valoriza a escola como espaço público, de encontro e cooperação, de trabalho colaborativo, defendendo a criação de novos ambientes educativos. Sobre esta a UNESCO[7] propõe um novo contrato social para fazer da educação um projecto público e um bem comum, no quadro de um espaço público, aberto, plural e participado.
No fundo, trata-se de transformar a educação numa viagem em demanda de portos inexistentes para corresponder ao cumprimento de um rito que a sociedade reconhece e para o qual oferece as condições necessárias. Mas, se as opções de sociedade implicam opções de educação e pontos de partida, a sociedade deverá evitar impor o lugar de chegada, mesmo que no nosso tempo os mecanismos de mercado tentem oferecer competitivamente esse lugar. E mais, terá de reconhecer a relevância e a autonomia profissional dos professores ao leme da ”viagem” e dos processos de mudança, porque estes são insubstituíveis e fazem toda a diferença na relação pedagógica de uma educação integral e humanista.
A autora é Professora Aposentada, doutorada em Ciências da Educação – Educação e Desenvolvimento, pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Desenvolve investigação na área da Educação.
Referências bibliográficas
[1] Michel de Montaigne, Les essais Libre Premier, traduction en français moderne par Guy de Pernon d’après le texte de l’Édition de1595, Édition du groupe eBooks libres et gratuits, Chapitre XXV, p.208.
[2] Em Portugal, todas as crianças que completavam seis anos entravam na escola obrigatoriamente, contudo em 1960 apenas 15% dos alunos do ensino primário obtinham o diploma e a grande maioria não concluía o ensino secundário. As taxas reais de escolarização dos 2.º e 3.º ciclos do ensino secundário não iam além dos 20% por finais da década de 60 do século XX.
[3] As competências requeridas são distintas das competências disciplinares tradicionais. Não se confundem com as disciplinas curriculares, os conteúdos e os conhecimentos. Segundo vários autores consistem na mobilização integrada de conhecimento, experiência e atitudes que capacitam o aluno a confrontar-se e a responder a situações complexas e contextuais. Caracterizam-se por três dimensões: uma natureza transversal, abrangendo mais do que um domínio do saber; um carácter multidimensional, na medida em que incorporam saberes, aptidões, atitudes e valores; uma capacidade de induzir comportamentos de ordem superior, quando aplicadas à resolução de problemas em situações complexas ou de elevada incerteza.
[4]“Vivemos o fim da educação da jovem geração pela geração precedente, que existia desde a origem Gerhard de Haan, Die Zeit in der Pädagogik. Vermittlungen zwischen der Füller der Welt und der Kürze des Lebens, Weinheim, Beltz, 1996, p.121.
[5] A avaliação deste programa incide sobre os alunos que em 2000 tinham a idade de 15 anos que corresponde à idade de conclusão do ensino obrigatório em grande número dos países europeus.
[6] António Damásio, Sentir & Saber: A caminho da consciência, Lisboa, Temas e Debates,2020.
[7] Reimagining our futures together: a new social contract for education. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000379707.