Olhar vídeos antigos de família – cuja existência devemos aos aficionados pela modernidade em seu tempo,- é uma dádiva, mas tem seus percalços na alma. Um dos que recebi registrou a comemoração de um Natal, com o requinte que aquela família se permitia. Uma menina, criada sem o pai – que lhe negara a paternidade, numa época que ainda não dominava os hoje banais exames de DNA,- era o centro das atenções e as imagens a privilegiam.
Quantas dificuldades adviriam para algumas daquelas pessoas. A avó, com seu olhar incansável e um sorriso tímido, viveu anos em que a felicidade fugaz teve a canga de padecimentos tantos. Rigorosa consigo mesma, tenho lá minhas dúvidas se conseguia relaxar e fruir os momentos especiais que volta e meia pousam em nossas mãos. Os pais geram, passam a velar por seus filhos e o fazem pela pulsão da natureza e pelo amor. Desconhecem o que o caminho lhes reserva, mas num belo dia suas cansadas e trôpegas pernas falam por si só. Quanta renúncia para que aquela neta tivesse um sorriso aberto e feliz! Só Deus e um travesseiro souberam.
—————- x ——————
Há alguns dias perguntei a amigos por que razão nos preocupamos tanto com a opinião dos outros. Por que no Brasil a inércia tem como justificativa o que pensam as nações dominantes sobre o que podemos ou não fazer? Se adotarmos uma medida extrema seremos invadidos por exércitos dali ou de lá? Seremos boicotados, padeceremos de um bloqueio continental?
Foi assim que associei a preocupação com o que os outros pensam e as pesquisas de opinião que pipocam diariamente na mídia, como uma que acabo de receber, relacionada à invasão do congresso nacional. Qual a sua opinião? Aprova, não aprova ou não sabe? Como por óbvio não aprovo, mal consigo digerir que alguém possa aplaudir um despautério como aquele, cujos danos pagaremos todos, reconheçamos isto ou não.
Mas não quero escrever sobre eventos, mas sobre a abóbada espiritual debaixo da qual vivemos e o significado último das pesquisas de opinião. Em “A política e o diabo”, o polonês Leszek Kolakowski começa lembrando aos navegantes que o diabo é incapaz de criar e que nossas necessidades e desejos merecem ser satisfeitos tão somente se o seu fim supremo é Deus.
Kolakowski foi marxista. Quando rompeu com o governo comunista polonês, migrou para o mundo livre, onde lecionou e está sepultado. Mal entrado nos vinte anos passou a criticar o stalinismo, mas continuou marxista. Até se dar conta de que o totalitarismo não era um apanágio de Stalin, mas o resultado lógico do marxismo.
Kolakowski comenta o colapso metafísico que subverteu a hierarquia no universo e deixou livre a arte, a ciência e a política dos ditames da lei natural. Era de esperar que se cada domínio da vida conquistasse autonomia – e decidisse por si só o que é bom ou próprio, se os vereditos ficassem sob a livre escolha dos homens e esta não fosse iluminada pela graça,- cairíamos no terreno do “macaco de Deus”, como era denominado o diabo nos tempos medievais.
Assim tudo se degrada, como a arte que “se torna objeto de puro divertimento, (…), de lisonja dos gostos impuros do público, ela não será apenas moralmente indiferente, mas favorecerá necessariamente o pecado”. No caso da política, se ela é “puramente uma luta pelo poder, ela é por definição, em categorias da fé cristã, o domínio do diabo”, colocando a seu serviço os bens políticos autônomos, aqueles que se tornam fins em si mesmos. Em detrimento do bem comum.
A política que passou a depender de si mesma, segundo Kolakowski, desistiu da “verdade” como alicerce em favor do “consenso”: “Esta é realmente a pedra angular da democracia; o ‘consenso’ não implica de forma alguma que seus participantes sejam os benditos donos da verdade. A maioria deve governar, não porque tenha razão, mas porque ela é simplesmente a maioria”.
A serviço de quem estão as pesquisas sobre as coisas mais estapafúrdias? Do “consenso”, este mantra que pode nos afastar, e muito, da verdade. Este mantra que tenta matar nossa esperança, o bem sem o qual não sabemos sequer se desejamos continuar vivos.