O Domingo da Palavra de Deus e o dia da conversão de S. Paulo precedem o dia dos consagrados, 2 de fevereiro. Há uma relação estreita entre a palavra de Deus que chama à conversão e à missão dos consagrados, como chamou S. Paulo. Escrevo no dia 20 de janeiro, dia da conversão de S. João de Deus, que evoca o seu chamamento a converter-se e ser enriquecido pela misericórdia divina para ser hospitaleiro e fundador da Ordem Hospitaleira dos Irmãos de S. João de Deus na qual celebro este ano o jubileu de diamantes.
Não consta que João fosse grande pecador; contudo, converteu-se de tal modo a Cristo que chocou a muitos, exceto S. João de Ávila, pregador da festa de S. Sebastião, em Granada de 1538. Como Irmão em idade avançada, a sua conversão ruidosa quase me põe em sobressalto como apelo à minha. A cada passo se ouvem histórias reais de personagens que chocam os seus contemporâneos. As mais chocantes são as dos que destroem as suas obras de arte por insatisfação de não encherem o seu ego ou não darem sentido à própria vida, como aconteceu com alguns pintores e escritores.
Por não conseguirem identificar-se com as obras tiveram de persistir na procura de algo de mais válido para a própria vida. Santos como S. Francisco de Assis rejeitou o negócio que o seu pai lhe ofereceu e escolheu entregar a sua vida ao Pai do Céu. O seu gesto de despir a roupa do pai e recusar a profissão de comerciante rico, levou-o a consagrar-se inteiramente ao “Pai Nosso” e a descobrir a sua missão. Chocou a uns pela sua quase loucura; e tornou-se para outros o santo Poverelho chamado a reconstruir a Igreja que ameaçava desabar, como, em Roma, o mostra a sua estátua em frente de S. João de Latrão.
João de Deus, o Português de Granada, desprendeu-se da sua loja e livraria, com modos de louco e assim considerado pelos que o levaram ao manicómio onde foi tratado com chicotadas. Para João de Ávila era, porém, loucura de amor a Jesus para obter a sua misericórdia. E na oração insistente o Senhor chamou-o a cuidar dos infelizes doentes maltratados no mesmo hospital, e, em breve, à vocação de enfermeiro misericordioso com todos os frágeis e mais necessitados de Granada.
No dia 2 de fevereiro, festa da Apresentação de Jesus no templo, os Religiosos também celebram a sua consagração, em ação de graças pela fidelidade de terem deixado tudo por amor de Jesus. Não poucos, em todos os tempos também passam por meio-loucos por Cristo, como S. Paulo cuja festa de conversão e chamamento à missão de apóstolo dos gentios encerra a semana de oração pela unidade dos cristãos no dia 25. Paulo foi um convertido que se vangloriou por seguir Cristo, e Cristo crucificado e, ao lado dEle, considerar todos os seus talentos, apesar do seu valor, como lixo. E assim fizeram, em 2022, os cerca de 5.621 cristãos que deram a sua vida pela sua fé e opção por Cristo, quando perseguidos e mortos em cerca de quatro dezenas de países.
Há várias categorias de consagrados: crianças e adultos batizados, jovens crismados; sacerdotes e bispos ordenados. A todos é pedido que ponham Cristo acima de tudo. Quanto aos religiosos e religiosas, tornam-se consagrados ao aceitarem o convite de Jesus para o seguir de forma mais radical, pondo o Evangelho acima das tarefas do mundo como milhões de homens e mulheres que na história da Igreja deram passos de conversão evangélica a Jesus e se consagram na profissão religiosa como religiosos e monges.
Abraçaram um modo de vida de tripla dimensão: vida cristã comprometida com Cristo, missão ativa na Igreja e inserção em comunidades de vida fraterna. No discernimento para se consagrarem deixam-se iluminar pelas Palavras de Jesus nos evangelhos e pelo carisma e exemplo dos fundadores; e dizem sim a uma opção particular. Abrem-se ao tesouro da sua Palavra de Deus, deixando-se guiar por ela e fecham-se às palavras de sabedoria mundana. A oração pela unidade dos cristãos que está a decorrer coloca-nos à escuta dessa Palavra na Sagrada Escritura como caminho a seguir para se chegar a uma unidade autêntica e sólida, de unidos a Cristo (Cf. Francisco, “Abriu-lhes” 3). A consagração vive-se nesta unidade e relação do amor de Deus e no amor de bem-fazer aos irmãos mais necessitados. S. João de Deus tinha uma fórmula original interrogativa de pedir ajuda para o seu hospital que diz tudo: irmãos, quem quer fazer bem a si mesmo, ajudando os pobres e doentes?
Todas as formas de consagração cristã na Igreja católica exigem transparência e critérios evangélicos sem duplicidade mundana, mais ainda que as instituições políticas exigem idoneidade de carater e cidadania para defenderem o bem comum. A condição prévia para dar os primeiros passos para a consagração é a reta intenção testemunhada por Jesus no seu encontro com Natanael (Bartolomeu): «Eis um verdadeiro israelita em quem não há fingimento» (Jo 1, 45-51). A ilusão e mentira de não estar sujeito à lei do bem comum faz apodrecer tudo.
Funchal, Dia dos Consagrados