Volta e meia revivo o adágio “ovelha não é pro mato”. Estive no sítio e o caseiro me convidou a conhecer dois terneiros com menos de duas semanas. Antes de ir embora fomos até o local em que estavam amarrados em troncos de eucalipto. Suas mães pastavam a cerca de duzentos metros.
Como índio da cidade, já tive a experiência inesquecível de tanger gado em lombo de cavalo e de ajudar na pesagem de bichos brabos em brete, mas não cresci no meio rural. Decidi gravar algumas imagens para mostrar os terneiros à filha caçula. Ocupado com a câmera, fui pisando na corda do primeiro deles enquanto ele tentava escapulir. Pois não é que o danado correu em círculos, fazendo com que a corda rapidamente começasse a me envolver? Abortei a gravação e evitei o desenlace.
O caseiro divertiu-se. Tais episódios caem como luva nas almas simples, porquanto terreno em que sua superioridade é marcante. Me dirigi ao segundo terneiro, um dia mais novo e um pouco mais magro. Quando me aproximava percebi que baixara um pouco a cabeça e passara a movimentar um pouco uma das patas dianteiras. Vai te atacar, gritou entre risos o caseiro. E veio mesmo! Me esquivei como um toureiro sem pano e me enchi de brios. Quando ele se pôs novamente em corrida de ataque aguardei sua aproximação e peguei a corda, chomisco, perto de seu pescoço e o retive. Mugiu alto, como bicho grande. Logo olhei para os lados da sua mãe, imaginando que pudesse atender o reclamo.
O caseiro? Ria e me desafiou a derrubar o pobre terneiro, o que não fiz porque receei machucar o animal, de resto sem necessidade, mas sobretudo porque a esta altura da vida não preciso provar coisa alguma. Ademais, deve ter saboreado o fato. Ele derrubaria aquele terneiro em menos de dois segundos.
—————- x ——————
Estou a ler uma biografia de Santo Tomás de Aquino, da pena de Chesterton. Com origem aristocrática, sua decisão de converter-se num frade dominicano revoltou sua família. Tentaram dissuadi-lo, sem sucesso. Então o aprisionaram numa torre, da qual evadiu-se com a provável ajuda de uma irmã.
Aluno de Santo Alberto Magno, Aquino foi apelidado de Boi Mudo pelos condiscípulos. Um gigante intelectual, corre a crença de que sua gratidão ao Criador devia-se sobretudo a ter entendido tudo que leu. Convenhamos que não é pouco. A bem da verdade, se Chesterton já é pesado para este que vos escreve, por sua cultura, suas citações e seu estilo, mal me imagino lendo a Suma Teológica.
Tomás de Aquino, em seu mutismo, parecia não passar de um aluno obscuro. Como se enganavam os que o menosprezavam! Atento e experiente, Alberto Magno profetizou: “Chamais-lhe o Boi Mudo. Pois vos digo que este boi mudo há de mugir tão alto, que os seus mugidos encherão o mundo”. Chesterton enfatiza a harmonização de Aristóteles a serviço do cristianismo e menciona a contribuição de Aquino para evitar a perseguição obscurantista da ciência. Como as Escrituras não têm significados sempre evidentes, sua interpretação literal é falsa quando contradita um fato óbvio. Aquino contribuiu, desta forma, para desmistificar a falsa controvérsia entre ciência e religião. Este era um dilema tolo, acirrado por ignorantes e apressados. A verdade sempre existe, por mais difícil que seja o seu garimpo.
—————- x ——————
Numa quadra triste em que a liberdade de expressão no Brasil está nitidamente cerceada e não se sabe até onde isto vai, me pego pensando no terneiro. Viril, indômito em suas duas semanas incompletas de vida, será castrado em futuro próximo. Pode até não se tornar dócil, mas ficará mais acomodado e não atacará. Na lida do campo isto é prática comum: do nascimento ao abate cumprirá seu destino. Silenciar uma pessoa, entretanto, é matá-la antes mesmo que morra.