Nosso querido contador de histórias infantis foi um futurista há quase cem anos. José Bento Monteiro Lobato nasceu na cidade de Taubaté, interior do estado de São Paulo em 1882, e faleceu na capital do mesmo estado em 1948, vitimado por tuberculose. Formado em direito, chegou a ser promotor público. Graças a uma herança deixada por seu avô, conseguiu com o tempo viabilizar seus projetos literários. Dedicado integralmente à literatura, foi contista, ensaísta, tradutor, editor e romancista. Cultivou também a fotografia e a pintura.
Suas obras completas perfazem uma coleção de trinta volumes, sendo que dezessete deles são dedicados à literatura infantil. Foi um dos proprietários da Companhia Editora Nacional, tornando-se uma das personalidades literárias mais importantes do Brasil, até meados do século passado. Também passou a vida engajado em lutas pela modernização do país, como a exploração do petróleo e do ferro; criou várias empresas de perfuração de petróleo no Brasil, por isso prejudicou interesses diversos, sendo então perseguido; mas com seu espírito empreendedor, enfrentou as adversidades e progrediu em seus pensamentos e textos.
Monteiro Lobato foi um intelectual que acreditava no futuro, principalmente no futuro de seu país. O autor escreveu mais de sessenta livros infantis, fazendo parte desses os que constituem a Coletânea do Sítio do Pica-pau Amarelo, e mais de trinta livros para adultos. Lobato também traduziu e adaptou livros infantis: Contos de Grimm, Novos Contos de Grimm, Contos de Andersen, Novos Contos de Andersen, Alice no País das Maravilhas, Alice no País dos Espelhos, Robinson Crusoé, Contos de Fadas, Robin Hood.
Destacamos como sua obra-prima para público adulto, “Urupês”, uma coletânea de contos escritos desde 1914 a 1917 e publicada em 1918. Dessa forma, o autor inaugura na literatura brasileira um regionalismo crítico e mais realista do que o praticado anteriormente, durante o romantismo. A crônica que dá título ao livro traz uma visão depreciativa do caboclo brasileiro, chamado por ele de “fazedor de desertos”, estereótipo contrário à visão romântica dos demais autores.
“Urupês” foi um best-seller, sua tiragem ultrapassando os cem mil exemplares; a propósito, o urupê é uma espécie de cogumelo que prejudica o crescimento das árvores à quais se une, ele as faz apodrecer. Este livro de Lobato mereceu o elogio da crítica literária da época, ressaltando seu conhecimento e sua compreensão da paisagem, a qual soube “magistralmente exprimir, e uma graça especial em fixar os momentos ridículos e os pitorescos (…), tendo expresso a forte capacidade de comover seus leitores”.
De nossa parte e a partir de agora, vamos apresentar uma obra sui generis do autor, intitulada “O presidente negro”. Este foi o único romance de Monteiro Lobato pertencente ao gênero de ficção científica; foi publicado originalmente em forma de folhetim entre setembro e outubro de 1926 no jornal carioca “A Manhã”, e no final do mesmo ano, foi editado também em formato de livro sob o título inicial de “O choque”, com uma tiragem de 16 mil exemplares. Seu enredo é simples: Ayrton Lobo é um cobrador que trabalha para uma empresa chamada Sá, Pato & Cia, sofre um acidente de automóvel, e é resgatado pelo misterioso e simpático professor Benson. Levado para a casa desse, é tratado pela bela e cerebral Miss Jane, filha de seu benfeitor. Após alguns dias, Ayrton conhece a grande invenção do professor Benson, o “porviroscópio” (de “porvir” ou “futuro”).
Essa máquina se constitui em um dispositivo para se viajar no tempo. No entanto, com a morte do professor, a máquina é destruída, mas através da narração de Miss Jane, Ayrton é levado a conhecer os detalhes da campanha de eleição presidencial americana de 2228. Assim acontece esta previsão: à época, houve muita polêmica de ideias e nessa campanha o eleitorado branco estava dividido entre as mulheres, que apoiavam uma candidata, Evelyn Astor, e os homens, que desejavam a reeleição de Kerlog, o atual presidente branco, enquanto havia ainda um terceiro candidato, este negro, popularmente conhecido como “Jim Roy”.
Com toda essa divergência, o eleitorado conseguiu fazer com que o “colored” James Ray Wilde fosse eleito o 88º presidente americano. Polêmico pela vitória de um presidente negro, o processo eleitoral envolve interesses de grupos distintos da população norte-americana: de um lado, o poder e a supremacia dos homens brancos, de outro, as mulheres e suas novas propostas científicas e de organização da sociedade. Entretanto, a parte que transporta o leitor ao futuro dos Estados Unidos debruça-se não só sobre a ciência futurologista, mas sobretudo sobre a ética.
Permeado pelos ideais eugenistas, o futuro previsto por Lobato inclui o uso de procedimentos científicos em prol do branqueamento da população norte-americana, seja por meio de estratégias de despigmentação e alisamento dos cabelos, seja por negar aos negros seu direito de gerar descendência. Este é, sem dúvida alguma, um enredo politicamente incorreto. Em todo caso, “O presidente negro” aborda questões que foram muito além de seu tempo e continuam atuais: a emergência dos Estados Unidos como grande potência mundial, a discussão sobre os direitos das mulheres, as transformações trazidas pelos novos meios de comunicação, a percepção de tempo pelo homem moderno, as disputas raciais…
Muito embora Barack Obama tenha antecipado em 220 anos a previsão de Lobato sobre a candidatura de um negro à presidência dos Estados Unidos, o autor parece abordar com bastante clareza uma das situações mais pungentes daquele país e muito além, de quase toda sociedade atual. Neste sentido, a humanidade foi exposta por Monteiro Lobato sob a égide da distopia, a saber, qualquer organização social futura está caracterizada para futuras condições de vida insuportáveis.
Finalizo meu texto com palavras do próprio Monteiro Lobato, um escritor que merece nossa leitura atenta, ou aquele contador de histórias que encantou nossa infância, ou ainda, um homem dotado de muita inteligência: “Pois o professor Benson é um homem misterioso que passa a vida / no fundo dos laboratórios, talvez à procura da pedra filosofal. / Sábio em ciências naturais e sábio ainda em finanças, / coisa a meu ver muito importante. E tão sábio que jamais perde”. Sim, não o perdemos, porque a nós cabe conceituarmos corretamente o que se deve rejeitar em oposição à ética que verdadeiramente nos importa e nos envolve.
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