Passamos por Parintins. Água e floresta, cenários da natureza com ar de pintura expressionista…
Como uma velha árvore à beira d’água. Não mais a árvore, apenas o esqueleto esbranquiçado e hirto.
E mais na frente a multidão das garças – brancas e pretas – penduradas em árvores alagadas.
Bocomoco me emprestou o livrinho com o relato do frei dominicano que acompanhou a expedição de Orellana, em 1540. Descendo o imenso rio desconhecido (que agora estamos subindo), o barco dos espanhóis estava em más condições. Precisavam construir um novo bergantim e de maior porte, para poderem seguir navegando no oceano.
Madeira havia em profusão, mas os pregos necessários não, tinham que ser fabricados. Como iam parando viagem para conseguir comida, entravam em contato com os indígenas, que lhes traziam alimentos.
“… os índios vinham com suas jóias e patenas de ouro, e jamais o Capitão consentiu pegar nada, nem sequer olhar, para que os índios não desconfiassem, e quanto mais disso nos descuidávamos, mais eles de ouro se enchiam.
Aqui nos deram notícia das amazonas e das riquezas que se encontram lá adiante, e o que a deu foi um índio chamado Aparia, velho que dizia ter estado naquela terra. E também nos deu notícia de outro senhor que está apartado do rio, metido terra adentro, o qual dizia ele, possui muito grande riqueza de ouro: este senhor se chamava Ica; nunca o vimos, porque, como digo, estava desviado do rio.
… com a ajuda de Nosso Senhor em vinte dias se fizeram dois mil pregos muito bons e outras coisas.
… disseram que íamos encontrar os amurianos, que em sua língua chamam coniupuyara, que quer dizer grandes senhoras, que tivéssemos cuidado, que éramos poucos e elas muitas e nos matariam.
… o Capitão falou que éramos filhos do sol… se espantaram muito os índios e mostraram muita alegria, considerando-nos santos ou pessoas celestiais, porque eles adoram e têm por Deus ao sol, que eles chamam Chise… Enquanto isso, estando na obra do bergantim, vieram quatro índios a ver o Capitão, os quais eram de estatura que cada um era mais alto um palmo que o mais alto cristão, e eram muito brancos e tinham muito bons cabelos que lhes chegavam até a cintura, adornados de ouro e roupa; e traziam muita comida…”
(O relato no bergantim me leva nas águas desembocadas do tempo, vários séculos antes… Ao mesmo tempo o navio branco, aqui e agora, segue seu rumo e o que me espera lá adiante eu não sei, nem tenho como especular. Dois desconhecidos de sentidos contrários, o dos conquistadores lá atrás e o meu lá na frente. A confluência metafísica dessas duas torrentes cria algo, como um espelho interior, não de ideias ou razões e sim de intuição e emoção, que toda a minha vida reflete e em tudo o que está por vir põe sua chancela.)
Na última noite no convés pouco se dormiu…
A nave seguia inexorável.
Bem embrulhada pela escuridão das margens e das águas, lacrada pelo silêncio.
Os passageiros foram se juntando em grupos.
No nosso, Carcará preparou a cachaça, alguém abriu cervejas e foram se chegando os franceses, as alemãs, mais dois gaúchos, um militar e um comerciante. E quando estávamos começando uma roda de chimarrão a condessa Isa se juntou a nós, trazida pelo Othon.
Traçamos camarão com cerveja, e a cachaça Cocal rodou de mão em mão, para esquentar as almas.
Depois se armou um inevitável carnaval na coberta superior. O convés se encheu de gente pulando ao som do violão, chocalho do Carcará e grande quantidade de garrafas marcando o ritmo.
Alguns membros da tripulação se incorporaram à orgia, mas o comandante Zeca Rodrigues ficou firme no timão.
Ao amanhecer chegamos no encontro das águas do Amazonas com as do rio Negro.
Em Manaus ainda fiquei sete dias com a Operação Mauá, pulando de um lado a outro em um programa de passeios pelas fábricas totalmente improvisado, já que o coordenador local nada havia providenciado. Ainda assim, valeu a visita à cervejaria Miranda Corrêa, numa rua próxima ao Rio Negro. Tem um prédio art nouveau de 1912. O resto do tempo a gente gastava em ir até o quartel do 1º BIS para as refeições.
E fomos à Zona Franca, onde os universitários se jogaram como piranhas sobre as calças Lee.
Estávamos almoçando no quartel quando vi alguém conhecido entrar na sala e se aproximar da nossa mesa, era o Bicão. Desviei o olhar, cortei um naco de carne e comecei a mastigar.
Nisso, ouvi ao lado a voz do oficial que nos havia recebido:
– Tenente Mauroak, grande prazer em vê-lo por aqui!