Abracei e voltei a abraçar três vezes o Ronaldo. A gente tinha se reencontrado por acaso, na saída do cinema Guarani. Agora ele ia voltar a Belém junto com os universitários. Dentro da nave branca, que ainda não partia, levamos um último papo, sobre o que cada um ia fazer da vida, dali por diante. Ele voltaria para o seu emprego na prefeitura. E eu, subiria o rio Negro, ou iria para a Bolivia? Othon, o cearense, ia me dar sua máquina fotográfica velha, já que comprou outra, na Zona Franca. Mas sugeri que fizesse uma rifa na viagem e desse o dinheiro ao Ronaldo, que está sem um puto para voltar ao sul. O apito soou e desci do navio.
Depois fiquei no cais olhando tudo partir, as vozes desaparecendo, os acenos e as luzes diminuindo. O barco deu meia volta e ja não vi mais ninguém. Ainda me demorei olhando ele se afastar lentamente, até se tornar uma mancha branca encolhendo e avançando para a confluência das duas escuridões, do céu e do rio-mar, até se diluir no pretume final.
Um nó na garganta, um vazio no peito…
Por que não voltei também, por que quis ficar sozinho?
Alguma coisa que ainda não explico veio me empurrando para este momento. Talvez seja o fundo do redemoinho, pensei caminhando, enquanto a noite me assediava com fragmentos melancólicos de um poeta português, que jogava xadrez…
No vasto redemoinho em que jaz indolentemente o mundo inteiro…
tudo é nada, e no átrio do Invisível,
cuja porta aberta mostra apenas, defronte,
uma porta fechada,
bailam todas as coisas, pequenas e grandes
do universo…
Tudo é sombra e pó mexido…
Um dia, no fim do conhecimento das coisas,
abrir-se-á a porta do fundo,
e tudo o que fomos – lixo de estrelas e de almas –
será varrido para fora,
para que o que há recomece…
Andei algum tempo a esmo, e de repente me vi em frente de um enorme relógio instalado sobre uma construção de pedra elevada. O relógio tinha uma inscrição em latim, só entendi a palavra ultima.
Última Thule? Última viagem? Última chance?
Era quase meia-noite e, como eu não tinha para onde ir, segui caminhando. Vagueei como um sonâmbulo pelas ruas desertas de Manaus, até chegar numa praça cercada de prédios antigos, onde havia uma grande estátua da Virgem Imaculada. Me sentei num dos degraus do monumento, deixei o queixo cair sobre o peito e fiquei lá, repassando minha vida. Mas me invadiu um grande cansaço e fui me estirar sobre a grama de um dos canteiros que havia no entorno.
No outro dia pela tarde conheci uma magrinha jururu, a Iara. Foi na rua Saldanha Marinho, me chamou a atenção pela incrível semelhança com outra mulher da rua, que fazia ponto perto de uma esquina da rua Riachuelo, em Porto Alegre.
Franzina, um pouco encurvada, tímida, a expressão desamparada do rosto sempre igual, mesmo quando falava.
Quando a vi, fui detendo a caminhada e fiquei rondando por ali, porque o tapete voador tinha me levado para trás… Para uma rua deserta numa noite fria lá do sul. E lá estava aquela moreninha de aspecto doentio, parada sempre no mesmo lugar. Nunca vi ela sair para algum hotel com um homem, apenas certa vez vi um cara ao seu lado perguntando os preços.
– Elementar, meu caro Tatu-da-bunda-seca – falou uma voz muda dentro de mim. O redemoinho se desenrolou e aí tens a tua Cobra Grande, sacudindo o rabo lá atrás e te hipnotizando aqui, com esses olhos de igarapé.
– Tá afim dum programa? – falou Iara com o olhar desolado, interrompendo minha viagem interior.
Não estava, mas achei melhor dizer que não tinha dinheiro, o que era uma meia-verdade, Carcará e Othon tinham me passado um pouco de grana.
Ela endureceu seu olhar o melhor que pôde e virou o rosto para os paralelepípedos da rua, que seguiam ladeira abaixo. Nisso se escutou uma voz metálica de mulher atrás de nós.
– Combinando a sacanagem na ladeira do Quebra Cu, hein? Me convida que eu vou.
Era a amiga Raimunda, pouco mais de vinte anos e da rua também, só que mais cheia de carnes.
Raimunda seguiu caminhando e parou um pouco adiante, olhando com o pescoço esticado para algum lugar lá embaixo. E fez um sinal, pra gente se aproximar.
De onde estávamos podíamos espiar uma lojinha de roupas, a uns vinte metros à direita da ladeira. Um homem de porte atlético e bigode discreto estava pendurando umas camisas.
– Eu venho todos os dias aqui pra ver ele, eu amo esse turco – ela me confidencia, como se eu fosse um velho amigo seu.
Estudo seu rosto por uns momentos, ela continua com os olhos grudados no comerciante.
– O que me fez gamar nele é a bunda que ele tem. Sou louca pela bunda dele.
Ao dizer isso ela entrecerra os olhos, movendo a cabeça devagarinho.
De repente ela fecha a cara e se escafede rua acima cuspindo e xingando.
E fica zanzando de cabeça baixa de um lado a outro da rua, resmungando sozinha.
– Ela não pode ver a mulher do turco, ela entra em parafuso -, diz Iara com o olhar distante.
De fato, uma mulher gordinha veio varrer o chão à frente da loja.