Conselho Nacional de Educação (Portugal)
1. Conceitos e pressupostos
Os sistemas de educação e formação confrontam-se hoje com a exigência de preparar os alunos para se adaptarem e responderem aos múltiplos desafios de um mundo mutante, incerto, complexo e axiologicamente ambíguo nas suas contradições.
A melhoria da qualidade das aprendizagens é assumida por todos os governos, como um dos desafios centrais das políticas educativas. Em consequência, os problemas da aprendizagem e do conhecimento profissional docente constituem-se num campo de investigação privilegiado, designadamente em programas destacados e influentes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) , que têm passado a mensagem de que os professores — enquanto profissionais do conhecimento altamente qualificados — são a chave de aprendizagens de qualidade e de sistemas de ensino excelentes.
Contudo, e porque a profissão docente é uma profissão de interacção humana com uma missão que transcende a matriz cientifico-pedagógica, a qualidade das aprendizagens também depende da qualidade de uma relação educativa (pessoal e interpessoal) eticamente informada, já que a dimensão ética é indissociável da função docente. Neste sentido, a construção e aprofundamento no interior do conhecimento profissional de um conhecimento pessoal é relevante, considerando que o professor, qualquer que seja a sua especialidade, é também, e sobretudo, um profissional de humanidade.
Decerto, poderá entender-se que a pedagogia stricto sensu comporta uma pedagogia ética. Porém, aqui, trata-se de considerar a ética profissional como necessária à construção de uma dimensão inscrita na visão do humanismo personalista que valoriza a pessoa, cada pessoa, nas múltiplas dimensões da existência humana.
O conhecimento de si na relação com o outro torna-se fundamental, orientado já não apenas em função da eficácia das aprendizagens, mas também direcionado para clarificar a inter-relação entre a dimensão pessoal e a dimensão profissional que coexistem na ação educativa e muitas vezes se sobrepõem, de forma acrítica, com reflexos na ação ética.
Subjacente à articulação entre ética profissional e condição docente está o pressuposto de que um docente/professor é um educador profissionalmente competente e eticamente comprometido: um profissional que usa a interrogação ética na prática e na reflexão educativa, à luz de um conjunto de valores nos quais se reconhece e com os quais se pode comprometer, não por imposição normativa, mas por imperativo da sua consciência, isto é, a natureza da vinculação ética não é uma questão de dever, é uma atitude de liberdade.
Na tentativa de apresentar a ética profissional docente como uma questão de intencionalidade e de liberdade pessoal, associada à construção de uma visão pessoal de inquietude, questionamento e reflexão, faz-se uma aproximação teórica à ética do cuidado , na convicção de que é muito mais lógico e mais compreensível, do ponto de vista profissional docente e nos contextos actuais, projectar essa intencionalidade ética no agir profissional em quadros de referência axiológica do que reger-se por construções deontológicas.
2. Entender o mundo, a profissão e os alunos: um desafio ético
Entender o mundo, a profissão e os alunos é um enorme desafio ético que este século traz à educação em geral e aos professores em particular, no contexto das sociedades contemporâneas, abertas, plurais e com novos níveis de complexidade.
Várias razões ideológicas, sócio-culturais e sócio-profissionais podem ajudar a compreender a imensa dificuldade que este desafio comporta. Em primeiro lugar, a erosão dos valores numa sociedade marcada pelo relativismo cultural e ético. Este modo de pensar — demasiado subjectivo para se poder encontrar nele um critério que seja comumente aceite e válido — favorece a perda de referências morais e éticas. O “crepúsculo do dever”, na expressão e sentido que lhe dá Lipovetsky , constitui, por sua vez, uma influência cultural dominante. Trata-se de uma mudança na hierarquia de valores, que rejeita o discurso do dever e paralelamente exalta os direitos individuais, desconsiderando normas e regras que impliquem sacrifício para as substituir por normas «indolores da vida ética».
A vulgarização desta mentalidade fragiliza a missão da escola e do professor. Ela contribui também para promover a ideia de que direitos e deveres não se equivalem, nem exigem a reciprocidade correspondente, quando uns e outros são parte integrante e indivisa da dignidade humana: se temos direito à liberdade temos a obrigação de respeitar a liberdade dos outros; se temos direito à educação temos a obrigação de aprender e de ensinar tanto quanto a nossa capacidade nos permite e partilhar o nosso conhecimento e experiência com os outros.
No contexto organizacional português, os mandatos da sociedade, que transpõem para a escola questões complexas, socialmente controversas ou insuficientemente esclarecidas, num quadro de constrangimentos e dificuldades acrescidas , constituem-se, de igual modo, numa conjuntura adversa da missão docente a que progressivamente se juntam outras tarefas de natureza técnica e administrativa.
Este excesso de pedidos da sociedade e dos novos papéis que lhe estão associados sobrecarrega e descaracteriza a função docente. Não permite um desenvolvimento profissional adequado, nem o exercício da dimensão reflexiva, porque dispersa e retira tempo necessário para aprofundar as competências essenciais a um profissional que enfrenta no quotidiano escolar a complexidade da circunstância educativa.
A par das influências culturais e das questões associadas, os novos horizontes de conhecimento, sobretudo no domínio das neurociências e das tecnologias digitais, confrontam positivamente o conhecimento profissional docente.
A importância das emoções — amplamente comprovada nos nossos dias pela filosofia da mente, pela psicologia e pelas neurociências —, e outras descobertas sobre o funcionamento do cérebro questionam e desafiam as concepções de ensino e de uma pedagogia racional, que no século passado se apoiou sobre a emergência das ciências do homem e da sociedade, das quais a nossa representação pedagógica é ainda herdeira.
Estes novos horizontes colocam a questão de compreender o modo como a psicologia e a pedagogia, entre outras ciências, podem acompanhar a nova realidade, abrindo-se a um continuum de possibilidades que a dicotomia tradicional entre emoção e razão exclui. Por sua vez, as mudanças trazidas pela expansão do cibermundo e pelo crescimento da conectividade pela Internet requerem competências para lidar com as dimensões éticas e sociais das tecnologias digitais .
Num olhar mais próximo, a própria condição da Educação concentra na escola grandes questões, ambiguidades e dificuldades, tais como:
– a opção política de centrar o ensino no aluno ou nos saberes;
– a questão da multiculturalidade e da tolerância ;
– a crise de autoridade perante comportamentos de indisciplina e de violência escolar que a instituição cada vez menos domina;
– a recontextualização pedagógica decorrente da instauração das abordagens por competências e a criação de mecanismos de diferenciação pedagógica para concretizar o traço mais importante da pedagogia moderna, a saber, fazer com que cada aluno receba um tratamento diferenciado e específico.
A relativização do saber e o desencanto pela escola não são alheios a estes desafios éticos. A proliferação e multiplicidade dos saberes, os progressos dos recursos informáticos — que, se por um lado são um óptimo meio para obter informação, por outro desestabilizam o equilíbrio entre a informação com que somos abalroados e a capacidade de compreensão e assimilação — alteram fortemente a relação professor/aluno. O computador é um mediador, muitas vezes um “muro” entre professor e aluno, porque a informação e os saberes já não estão apenas na escola.
A revolução informática que está em curso teve uma repercussão — ainda por compreender totalmente — na educação, nas instituições educativas, na família, em toda a sociedade. Transformou a própria estrutura social, o acesso ao mercado de trabalho, depreciando o valor do diploma, que dantes era a chave para um emprego estável e actualmente é um elemento de selecção entre múltiplas variáveis. Do mesmo passo, a penúria de emprego constrange os jovens a aceitar trabalhos para os quais possuem habilitações superiores às requeridas, em situações de precariedade de tal modo penalizantes que indesejavelmente se começa a instalar, entre muitos, a descrença na importância de frequentar a escola.
Por último, neste vasto contexto interpelador, o desafio maior reside no cumprimento dos compromissos éticos, imprescindíveis à transformação da educação num processo em que cada pessoa possa desenvolver as suas capacidades e a sua realização pessoal.
3.1. Da decisão e reflexividade éticas
Este olhar sobre a multiplicidade de questões que envolvem a educação e a condição docente mostra como a decisão e a reflexividade éticas são mais exigentes, mais difíceis e mais necessárias ao agir educativo no presente do que no passado. Perante situações e tensões dilemáticas, que a prática educativa comporta na relação pessoal e interpessoal (alunos, colegas, pais, autoridades educativas, comunidades…), não bastará ao professor a consciência constativa de factos e valores, ou mesmo a distinção entre estes, em diversos planos (sociológico, ideológico, pedagógico…). Hoje, é-lhe pedida uma consciência valorativa (o que deve ser) sempre que o professor toma consciência de contradições e incertezas éticas. Esta consciência exige-lhe uma reflexão ponderada sobre os problemas, os factos relevantes, as opções possíveis e as consequências inerentes, à luz de um quadro axiológico assumido pessoal e profissionalmente na tomada de decisão.
3.2. Da condição docente na sua dimensão instituinte
É nesta conjugação de contextos, condicionantes, questões e novos desafios de progresso e liberdade que a condição docente se estabelece e materializa.
A formulação deste conceito surge pela primeira vez em 1996 na Recomendação da OIT/UNESCO relativa à condição dos professores . Aí se estabelecem não só os direitos e responsabilidades dos docentes e os padrões internacionais relativos à formação inicial e continua, recrutamento, emprego e condições de ensino-aprendizagem e o direito à participação na decisão política entre outros, mas também se reconhecem o papel essencial dos professores no progresso da educação e a importância do seu contributo para o desenvolvimento do homem e da sociedade moderna.
Trata-se de um conceito amplo, cuja aplicação se vem aprofundando e complexificando ao longo do tempo, de tal modo que presentemente a condição docente se debate em todas as suas componentes com ambiguidades, tensões e paradoxos, decorrentes do processo sócio -histórico e sócio-cultural da sua construção, ou de pressões sociais, opções de política educativa, exigências do conhecimento profissional e mesmo de vivências culturais da escola que, em muitos aspectos, são contraditórias com a evolução do trabalho docente .
Na economia deste texto, opta-se por centrar a reflexão com particular incidência na dimensão específica e instituinte da condição docente: a relação professor-aluno presente na escola e na sala de aula.
Esta relação que se instaura e realiza numa dependência recíproca entre o professor e o aluno pode ser assim definida:
“Um não existe sem o outro. Docentes e discentes se constituem, se criam e recriam mutuamente, numa invenção de si que é também uma invenção do outro. Numa criação de si porque há o outro, a partir do outro.
O outro, a relação com o outro, é a matéria de que é feita a docência ”.
Nessa «matéria», ao mesmo tempo vinculante e dinâmica, ambos são sujeitos com identidades distintas, não apenas por serem sujeitos com pertenças socioculturais diferenciadas, mas porque a identidade, no caso da pessoa, é uma noção de carácter dinâmico que se mantém com o outro que nos comunica e cria o sentimento da nossa diferença. A alteridade que nasce pela voz e pelo gesto do outro é aqui abordada como questão ética.
4. A alteridade, a centralidade do humano e os valores
Nesta linha de pensamento, a ética profissional docente constrói-se num processo de encontro com o outro e com o mundo. A profissão docente obtém a sua qualidade ética quando, nesse encontro, o reconhecimento do outro se exerce com uma sabedoria prática impregnada pela incerteza da complexidade humana.
O modo como se concebe a alteridade, se coloca a centralidade do humano em todas as dimensões do processo pedagógico e a importância de valores no agir profissional são pilares fundamentais na relação entre ética profissional e condição docente.
Na perspectiva filosófica, a questão do sujeito e da alteridade foi abordada por Ricœur, ao mostrar ser possível dar existência ao outro sem o reduzir a um prolongamento do eu cartesiano, definida deste modo: “Pôr-me no lugar do outro, ao pensar em mim como se fosse o outro significa que o outro é constitutivo da minha própria identidade” .
Nesta lógica argumentativa, preciso do outro para existir como sujeito moral, mas aquilo que sustenta a norma moral não reside na minha vontade individual nem na existência de uma norma moral heterónoma; reside na prática concreta de me colocar no lugar do outro. A alteridade tem assim um grau tão íntimo que cada um não pode pensar-se sem o outro e ao mesmo tempo é o eixo fundador da ação ética .
Em Le Choix d’Éduquer, Meirieu retoma o pensamento de Ricœur e a definição de ética de outros filósofos (Jankélévitch e Lévinas), segundo a qual a ética é, antes de tudo, o sentido do outro, a preocupação pelo outro, a prioridade dada ao outro incondicionalmente. Porém, sublinha que o envolvimento ético é, acima de tudo, o acesso do outro ao seu estatuto de sujeito autónomo, responsável pelos seus pensamentos como pelas suas escolhas. Para Meirieu, agir eticamente é adoptar a atitude moral de agir como se fossemos totalmente responsáveis pelo outro, sabendo, no entanto, que somos em larga medida impotentes para o fazer e que, de qualquer maneira, a decisão cabe ao próprio educando, como se depreende desta afirmação: “Não podemos passar sem a esperança de mudar, mas nunca devemos acreditar na presunção, que seria verdadeiramente ilusória, que podemos decidir o dia e a hora!”
5. O compromisso ético e o regresso à pedagogia do mestre
A relação docente-discente, à luz destes pressupostos teóricos e a sua transposição para a prática, é um convite indeclinável para o autoquestionamento e para a reflexão sobre o modo como se vive o desempenho profissional na relação com o outro. No diálogo do professor consigo mesmo pode surgir este conjunto de perguntas: o que representa este aluno para mim? Estou a reconhecê-lo como sujeito, como pessoa? Ou, vejo nele um indivíduo que ensino para que tenha sucesso académico e me sinta profissionalmente realizado?
As interrogações que se acabam de enunciar contêm duas questões importantes claramente definidas: a preocupação pelo outro e a preocupação do docente com a finalidade dos seus actos, induzindo na relação professor-aluno uma incontornável intencionalidade ética. Estas perguntas revelam ao mesmo tempo a ambiguidade semântica da palavra professor, a qual está expressa na tensão dilemática entre duas identidades: o professor técnico/funcionário e o professor educador, o mestre, como referem autores clássicos (Gusdorf, 1963 e outros), revisitando os conceitos gregos de pedagogo e de mestre na distinção entre as suas funções .
O compromisso ético joga-se nesta tensão entre ensinar, transmitindo conhecimento, ou fazer aprender, desenvolvendo capacidades.
São duas visões sobre o modo de exercer a profissão: o oficio que se cumpre nos programas, nas metas e nos resultados académicos e/ou a missão exercida na sua racionalidade teleológica.
Não é indiferente sob o ponto de vista da ética profissional docente exercer a profissão como oficio ou como missão. Nestes modos de exercer a profissão, a pedagogia do educador exerce-se como uma espécie de contraponto à pedagogia do professor.
Quando o professor encara a profissão como ofício é tentado a considerar que a pedagogia (aqui entendida no sentido técnico e cultural da profissão), os programas, os exames e os resultados escolares dos alunos constituem para ele valores incondicionais. Ensina a todos os alunos a mesma coisa, i.e. ensina todos os alunos como de um só se tratasse, porque nesta situação o acto de ensinar só vale em relação ao fim que pretende: o sucesso escolar do aluno e ou a sua realização profissional.
Porém, quando a profissão é exercida como missão, cada aluno é um aluno e nenhum aluno pode ficar para trás. A prática pedagógica não se reduz à transmissão de um saber de conteúdos curriculares, porque nesta visão de desempenho profissional o professor sabe que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar condições para a sua construção e não ignora que neste processo também conta a representação que o aluno tem das suas qualidades morais e profissionais, da coerência entre o que diz e o que faz e, por isso o seu testemunho ético é igualmente importante.
A transmissão de conhecimento é um momento de uma prática pedagógica, valiosa em si mesma, porque encerra um bem e um sentido de preparar o aluno para o futuro. Ou seja, o saber é procurado, porque é um meio indispensável para a compreensão do mundo e adaptação à mudança, inserido num contexto mais amplo que engloba a vida inteira e a interiorização da ideia de que se estuda e aprende durante toda a vida.
O professor tem consciência de que no desenvolvimento da sua função, não se está servindo a si mesmo, mas a realizar uma tarefa que o transcende. E, tendo sempre presente a importância moral e social da sua função, ensina com a sabedoria do agir ético num quadro de princípios e valores cívicos e universais que livremente assume.
A liberdade, a verdade e a autonomia são três referentes axiológicos fundamentais no processo de uma ética de responsabilidade pelo outro e na assunção do compromisso ético:
– não obstante a noção contemporânea de liberdade estar hoje muito mal tratada, porque é entendida como desvinculação total de qualquer compromisso cívico, ético e mesmo natural, a liberdade, vivida nos seus limites e nas suas potencialidades , é essencial na relação educativa, porque está em causa a emergência do sujeito. Neste processo, a liberdade é ainda uma conquista simbólica que se obtém através de uma aprendizagem transformante do indivíduo em sujeito autónomo;
– a verdade, como valor a atingir dialogicamente, com intenção, inteligência e raciocínio bem orientado e como princípio de ação.
Numa relação educativa eticamente inspirada, no que respeita à verdade, o professor não deve limitar-se a enunciar princípios universalmente aceites como verdade. A sua função é abrir uma perspectiva de diálogo informado e esclarecedor sem pretender impôr e impôr-se. Abre o caminho e abre-se ao diálogo e à escuta. Pensa com o aluno e não se cansa de colocar questões até que este apreenda o sentido das verdades universais que podemos alcançar ou, pelo contrário, se aperceba que nem tudo se pode provar em bases irrefutáveis.
Não se trata de um diálogo inconclusivo i.e. susceptível de deixar o aluno em suspenso, porventura admitindo a sua ideia de verdade.
Trata-se de admitir as limitações das nossas capacidades cognoscitivas e de reconhecer que na procura da verdade, o diálogo é o requisito ético da liberdade. Representa um momento de sinceridade e de humanidade, de reconhecimento e de respeito pela presença do outro. A via dialógica, com espírito de abertura, torna-se caminho de verdade e de encontro com o outro. Neste processo, a liberdade é o caminhar, o ir e vir nesse caminho sem qualquer constrangimento, de forma liberta e autónoma.
– literalmente a autonomia é a capacidade de se dar a si mesmo a lei, de se auto-governar. Em contexto profissional docente, é a capacidade de gerir os processos de ensino-aprendizagem no âmbito dos programas definidos, de decidir sobre os métodos e procedimentos a adoptar, de tomar decisões curriculares não apenas as relativas ao modo de execução, mas também a novas formas de organização e de responsabilização.
Enquanto profissional intelectual e reflexivo perante a profusão de normas e orientações, o professor usa a autonomia quando não se limita a cumprir um processo previamente definido como o adequado para uma actuação profissional eficaz e, à luz do seu conhecimento profissional e do princípio reciproco de responsabilidade procede de outro modo ao serviço do bem comum.
Numa leitura interpretativa do modo como estes valores interferem na relação educativa, importa concretizar algumas situações que se podem manifestar na intencionalidade e no envolvimento éticos . Assim, o professor reconhece o aluno como sujeito quando permite que ele exprima as suas ideias livremente, sem constrangimentos, sem medo de afirmar o que pensa, sem se abster de fazer correções quando for caso disso. Nesta situação, um e outro constroem a sua identidade: o primeiro ao assumir o estatuto autónomo de responsável pelos seus pensamentos e ideias; o segundo ao orientar a sua acção no sentido de tornar possível a identidade do outro, reforçando por esta via a sua dimensão identitária de educador.
Também a este respeito, a atitude do professor é significativa. Quando a palavra do professor é perante a turma dá lugar ao monólogo e tem como resposta o silêncio do aluno. Pelo contrário, o diálogo acontece quando o professor fala para a turma, para aquela turma, de modo interpelante, numa relação personalizada, quer individual quer colectivamente, indo ao encontro das dúvidas ou interesses dos alunos ou fomentando a capacidade de dar nomes às coisas, isto é, de reconhecê-las de outra forma e de transformá-las. E essa ação ou capacidade de produzir ou fazer alguma coisa, especialmente de forma criativa, é o conhecimento que nos constitui enquanto pessoas, que torna possível a capacidade decisiva de representação simbólica humana.
Trata-se, no fundo, de promover a dimensão poiética, que constitui o significado imediato neste poema de Sophia de Mello Breyner :
“Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha.”
Interpretado noutra perspectiva, trata-se de uma forma do envolvimento ético emancipador que Meirieu propõe. Pôr-se no lugar do outro é, assim, a relação personalizada e o desprendimento do interesse próprio para ir o encontro dos interesses do outro e dar-lhe condições para que assuma uma forma de ser livre e criativo.
Nesta aproximação inicial à ética do cuidado, educar não significa ensinar, nem tão-só saber. É acolher o outro e o mundo. Pôr-se no lugar dele, olhar para ele e para o mundo e devolver-lhe o nosso olhar sobre aquilo que dele recebemos, levá-lo à descoberta de si nos encontros e desencontros que se dão no percurso educativo vivido em comum. Deste modo, a função docente mais nobre é ser mensageira de uma revelação para além do saber.
E, porque o que está em jogo é educar hoje e amanhã, a amizade entre professor e aluno deverá estar no âmago de toda a relação educativa, para que este realize os seus projectos de vida sem medo e com esperança. Não a amizade segundo a utilidade, mas segundo a virtude, ou amizade perfeita, a «melhor» amizade no sentido aristotélico (expresso no livro VIII da Ética a Nicómaco), ou como se percebe nas entrelinhas em Saint-Exupéry , na viagem do Principezinho em busca do significado de amizade que descobre ao perceber que a rosa era efémera e a tinha deixado só.
6. Um outro modo de pensar os desafios éticos
Viver a relação educativa, de acordo com os valores e princípios enunciados será sempre difícil. No estado actual da condição docente, em contextos e condições que eticamente a desafiam, sendo de grande complexidade sob o ponto de vista emocional, assumir o envolvimento ético de forma completa torna-se particularmente dramático. Perante turmas numerosas e heterogéneas, sem dispor de condições nem de tempo para personalizar a relação, nem para analisar e perceber as razões de dificuldades evidentes ou de obstáculos invisíveis, os professores vivem entre tensões e dilemas constantes e diversificados.
Vários autores identificam situações dilemáticas em contexto de sala de aula. Perrenoud equaciona onze dilemas relativamente à comunicação em torno da palavra, de entre os quais o de “dar lugar às representações dos alunos sem pôr em circulação teorias falsas e lhes dar crédito”. Ou outros que se apresentam em situações de emergência do sujeito privilegiando o diálogo, como estes: “autorizar cada um a dizer o que pensa sem cair no relativismo e no obscurantismo; trabalhar com o erro sem o legitimar; dar espaço à construção interativa dos saberes sem que a discussão caminhe em todos os sentidos”.
Por seu turno, Maria do Céu Roldão , quando aborda o sentido profissional do docente, centrando-o na ação informada de ensinar, identificou dilemas que surgem ao lidar com a diversidade:
– “Atender os mais fracos e “perder” o ritmo (médio) da turma? Ou atender à turma e perder os mais fracos?
– Lidar com a maioria e perder os talentos? Ou desenvolver os talentos e fazer baixar a maioria?
– Cumprir o programa (matérias) e não ser aprendido por muitos? Ou cumprir a aprendizagem a que todos têm direito e para isso gerir o programa?”
Outras situações com reflexos na sala de aula (consumo de droga, violência, …) podem apresentar-se como conflitos de valores em que o professor se interroga sobre o que é justo fazer por aquele ou aqueles alunos. Trata-se de escolhas difíceis que se confrontam por vezes entre um bem para ele e um bem para o outro, ou um bem para os outros.
Normalmente o professor tem esta luta em privado, por receio de admitir que está inseguro sobre as dimensões éticas do seu trabalho. Terá receio mas exige-se a si mesmo um sentimento forte para o olhar de frente. Este receio apela à coragem e à responsabilidade de o vencer, não porque a coragem seja um dever, mas porque é um valor englobante de todo o comportamento ético.
Em conclusão, sem perder de vista o contexto mais amplo em que as questões essenciais da vida humana desempenham um papel significante, para fazer evoluir a ética profissional docente afiguram-se decisivas duas condições:
– melhorar na condição docente a «condição de trabalho», libertando o tempo das tarefas técnico-administrativas;
– ousar inscrever no reforço de uma cultura de colegialidade a discussão sobre os dilemas e os problemas que cada vez mais crescem em silêncio.
Porventura a chave para uma docência eticamente implicada consiste em pensar os desafios éticos, partindo das limitações e das contradições para descortinar alguma inteligibilidade e alguma transformação. Estimular uma reflexão pessoal e partilhada, passo a passo, sobre as próprias atitudes, sobre a atitude perante a vida profissional e a condição docente, sobre o contexto moral ou ético representa um outro modo de pensar o cuidado e a responsabilidade pelo outro.
Leituras Recomendadas
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (CNE), Recomendação 1/2016. Recomendação sobre a condição docente e as políticas educativas, Lisboa, 2016, http://www.cnedu.pt/pt/deliberacoes/recomendacoes/1180-recomendacao-1-2016, consultado em outubro de 2017.
GUSDORF, Georges, Pourquoi des Professeurs? Pour une Pédagogie de la Pédagogie, Paris, 1963, http://classiques.uqac.ca/contemporains/gusdorf_georges/pourquoi_des_professeurs/pourquoi_des_profs.pdf, consultado em outubro de 2017.
MEIRIEU, Philippe, Le Choix d’Éduquer, Paris, Éthique et pédagogie, ESF, 1991.
NEVES, Maria do Céu Patrão Neves (coord.), Ética: dos fundamentos às práticas, vol. I, Lisboa, Edições 70, 2016.
RAMOS, Conceição Castro e ROLDÃO, Maria do Céu, «Memórias de Professores: representações e perceções da identidade profissional docente», in ALVES, José Matias (coord.), Memórias de Professores: Emoções, Identidades Profissionais, Currículo e Avaliação, Porto, Universidade Católica Portuguesa, 2013, pp. 53-115.
RICŒUR, Paul, Soi-même Comme un Autre, Paris, Seuil,1997.
ROLDÃO, Maria do Céu, «Professores – Dilemas de uma transformação», in MACHADO, Joaquim e ALVES, José Matias (org.), Escola para Todos. Igualdade, Diversidade e Autonomia, Porto, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 59-70, http://www.uceditora.ucp.pt/resources/Documentos/UCEditora/PDF%20Livros/EscolaParaTodos_e-Book.pdf, consultado em outubro de 2017.
TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro, «Da condição docente: primeiras aproximações teóricas», in Educação & Sociedade, Campinas, vol. 28, n.º 99, maio/ago. 2007, pp. 426-443, http://www.scielo.br/pdf/es/v28n99/a07v2899.pdf, consultado em outubro de 2017.
UNESCO, Repensar a Educação: Rumo a um bem comum mundial?, Brasília, UNESCO Brasil, 2016, http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002446/244670POR.pdf, consultado em outubro de 2017.