Por estes dias teve lugar em Davos na Suíça a conferência anual do Forum Económico Mundial (FEM). O FEM é uma organização privada que surge nos anos 70 por inicativa do empresário suiço Klaus Schwab, dando concretização a uma ideia do norte-americano Henry Kissinger, na altura secretário de estado, ideia essa que visava formar jovens leaders no mundo ocidental que fossem pró-américa. Na altura o mundo vivia a chamada política de blocos, o ocidental e o comunista, cada qual procurando expandir-se e bloquear a expansão do outro e pretendia-se fomentar a emergência de leaders que pudessem defender o bloco Ocidental.
O mundo entretanto mudou, deu-se a queda do muro de Berlim, e a expansão comunista parecia ter terminado. Todavia o mal estava já feito: a disseminação das sementes comunistas tinha sido feita por esse mundo afora e foi só uma questão de tempo até começarem a aparecer os brotes malfazejos dessa ideologia, agora travestida de mil e uma coisas que a tornam quase irreconhecível. Diria que o FEM é um dos casos dessa travestização. Parecendo um fenómeno típico do mundo capitalista porque aparenta ser meramente uma reunião de empresas e governantes que se encontram para estabelecer formas de cooperar, na realidade é, pelos slogans que propaga e as ideias que defende, talvez o bastião mais avançado do socialismo tecnocrático dos dias de hoje. Quem não viu já cartazes ou pequenos vídeos do FEM em que um jovem sorridente promete “Não terás nada e serás feliz!”?
Este slogan se por um lado reflete uma visão do Homem muito consentânea com o ideal comunista do fim da propriedade privada, é ao mesmo tempo revelador de uma visão do futuro que o considera como pouco mais que um robot. A confirmá-lo, noutros suportes propagandísticos do FEM, fala-se do metaverso como a quintessência da felicidade a que um ser humano pode aspirar, como se a sua plena realização se esgostase por entre as paredes virtuais de um qualquer cenário de realidade aumentada.
Entretanto defende-se o fim do automóvel próprio, o fim do consumo humano de alimentos de origem animal, a concentração das populações em mega cidades, o fim do dinheiro físico e a inventariação de todos os seres vivos do planeta à maneira de um inventário de armazém, a par de uma drástica redução populacional. Há quem fique horrorizado com a mera enunciação destes objetivos, mas o mais chocante é como eles podem ser defendidos sem obstáculos pelas elites que se concentram em DAVOS e sem que isso suscite um debate alargado na sociedade. Com efeito, os delegados aí reunidos representam empresas e organizações mas não são o fruto de um processo electivo democrático. Estima-se que em termos populacionais a representatividade de DAVOS não exceda as 6000 ou 7000 pessoas ou seja uma percentagem ínfima da população mundial.
O FEM na sua atuação configura aquilo a que poderiamos chamar de filosofia básica do globalismo e que consiste em isolar a política da democracia, transferindo o processo de tomada de decisão do nível nacional e internacional, onde os cidadãos teoricamente são capazes de exercer algum grau de influência sobre a política, para o nível supranacional, colocando um grupo auto-selecionado de “partes interessadas” não eleitas – principalmente empresas – no comando de decisões globais relativas a tudo, desde energia e produção de alimentos até media e saúde pública. A filosofia antidemocrática subjacente é a mesma que sustenta a abordagem filantrocapitalista de pessoas como Bill Gates, ele próprio um parceiro de longa data do FEM: que organizações sociais e empresariais não governamentais são mais adequadas para resolver os problemas do mundo do que governos e instituições multilaterais.
Talvez o exemplo mais simbólico do impulso globalista do FEM seja o controverso acordo de parceria estratégica que a organização assinou com a ONU em 2019, que muitos consideram ter atraído a ONU para a lógica de cooperação público-privada do FEM. Segundo uma carta aberta assinada por mais de 400 organizações da sociedade civil e 40 redes internacionais, o acordo representa uma “perturbadora captura corporativa da ONU, que moveu o mundo perigosamente para uma governança global privatizada”. As cláusulas da parceria estratégica, observam, “sugerem efetivamente que os líderes corporativos se tornem ‘conselheiros’ para os chefes dos departamentos do sistema da ONU, usando seu acesso privado para defender ‘soluções’ lucrativas baseadas no mercado para problemas globais, ao mesmo tempo que minam soluções reais inseridas no interesse público e procedimentos democráticos transparentes”.
Essa aquisição corporativa da agenda global, que o citado acordo de parceria estratégica entre a ONU e o FEM possibilitou, tornou-se particularmente visível durante a pandemia de Covid-19. A política de saúde global e a “preparação para epidemias” têm sido um foco do FEM há muito tempo. Em 2017, a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI) — uma iniciativa destinada a garantir suprimentos de vacinas para emergências e pandemias globais, financiada por doadores governamentais e privados, incluindo Gates — foi lançada em Davos. Entretanto, em outubro de 2019, apenas dois meses antes do início oficial do surto em Wuhan, o FEM co-patrocinou um exercício chamado Evento 201, que simulou “um surto de um novo coronavírus zoonótico transmitido de morcegos para porcos para pessoas que finalmente se torna eficientemente transmissível de pessoa para pessoa, levando a uma grave pandemia”. No caso de uma pandemia, observaram os organizadores, governos nacionais, organizações internacionais e o setor privado devem fornecer amplos recursos para a fabricação e distribuição de grandes quantidades de vacinas por meio de “formas robustas de cooperação público-privada”.
Portanto, é seguro dizer que quando a pandemia de Covid surgiu, o FEM estava bem posicionado para assumir um papel central na resposta à pandemia. Foi no encontro de 2020 em Davos, de 21 a 24 de janeiro — poucas semanas após a identificação do novo coronavírus na China — que o CEPI se reuniu com o CEO da Moderna, Stéphane Bancel, para traçar planos para uma vacina contra a Covid-19 , em colaboração com os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) nos EUA. No final do ano, o CEPI foi fundamental na criação do Covid-19 Vaccines Global Access (Covax), em parceria com a OMS, e no financiamento de várias vacinas contra a Covid.
Essas coligações público-privadas e centradas nas empresas – todas com vínculos com o FEM e fora do alcance da responsabilidade democrática – desempenharam um papel crucial na promoção de uma resposta centrada na vacina e voltada para o lucro à volta da pandemia.
O que é preocupante, no entanto, é que o FEM está agora a promover a mesma abordagem corporativa de cima para baixo em uma ampla gama de outros domínios, de energia a alimentos e políticas de vigilância global – com consequências previsivelmente igualmente dramáticas.
Há uma razão pela qual os governos muitas vezes parecem tão dispostos a seguir essas políticas, mesmo diante da ampla oposição da sociedade: é que a estratégia do FEM, ao longo dos anos, não foi apenas tirar o poder dos governos – mas também infiltrar-se nestes…