Skip to content

Vivemos em um palco de teatro   

  • Fevereiro 23, 2023
  • Cultura
  • José Rogério Licks

 

Eles entram cantando e pregando: é chegada a hora, o fim está próximo. Também entro e subo para os andares superiores do Theatre, olho uma porcelana chinesa e as plantas, depois vou sentar na última fila da plateia. Fico contemplando a abóbada de pinturas alegóricas, muito verde e dourado com um lustre de bronze suspenso. E me deixo ninar pela voz que clama no deserto, lá do palco. Tem seu charme essa mistura de Belle Époque com Apocalipse…

Aí a voz no palco vai crescendo, joga frases que se metamorfoseiam em torpedos psíquicos que cruzam o ar e vão incendiar as almas. Ao meu lado uma mulher responde pontual a cada uma das invocações, lá pela terceira ela está esbravejando e suando em bicas. Antes que sobre algo para mim, resolvo sair de fininho dali.

(Em São Luís a analista Genoveva me fez um comentário sobre esse pessoal dos neopentecostais. Parece que eles estão introduzindo uma inovação em matéria de transe, uma nova maneira de puxar o inconsciente: com textos bíblicos e retórica adequada, produzem efeitos como os de uma sessão de umbanda, só que sem batuque nem caboclos.)

Tinha passado a noite na Praça da Saudade e ao despertar caminhei um pouco até chegar numa velha igreja com uma torre só. Por perto havia uma árvore, me sentei encostado nela e fiquei tocando a música do bang-bang que tinha visto no cine Popular, pra não esquecer. Aí uma pinta se aproximou e ficou escutando. Quando soube que eu era do sul, me pediu pra tocar o Coração de Luto. Levantei os olhos das cordas e encarei ele, enquanto matutava.

O Teixeirinha tem sido muito vilipendiado, muita gente chama essa música de Churrasquinho de Mãe… Acho que essa injúria começou com um certo crítico musical do Rio, que ficou com inveja do sucesso do passo-fundense de um metro e meio de altura. Sucesso que ninguém da indústria do disco conseguiu explicar, sem promoção ou divulgação. A letra pode ter partes toscas, mas predominam momentos de grande força, que contam a perda da genitora aos nove anos, queimada no fogo. Pra que mentir, não sou fã do Teixeirinha. Mas ali no forno do Inferno Verde…

Introduzi a milonga e mandei brasa, pensando que poderia resultar em algo de comer, ou pelo menos um café.

Ele não se fez esperar e já no segundo verso estava cantando também, tentando uma segunda voz, a pleno pulmão.      Quando paramos de cantar vi que ele estava com os olhos molhados.

– Você canta legal – falei estendendo a mão.

– Eu sou  o Alceu. Tu tá parando onde? – ele perguntou.

– Ainda não tenho onde ficar, estou procurando.

– Então já encontrou, vem com a gente. Vamos fazer juntos uma peça de teatro,  eu escrevo, tu faz a música.

Pendurei a mochila nas costas e saímos caminhando em silencio. Escreve peças de teatro? Será que ele é daqueles crentes da Voz da Profecia? Caminhamos um pouco e ele parou na frente de um bar, me perguntou:

– Tá a fim dum sanduíche?

E entramos no bar, que era de um amigo dele. Foi uma festa, sanduíche de pernil com cerveja gelada. Mas na mesa ao lado da nossa dois homens conversavam, e um deles já tinha me chamado a atenção, quando fui dormir na Praça da Saudade. A roupa bem maltrapilha, achei que era um mendigo, tinha cara de europeu e algo de doente mental, pensei.

Ali no bar Graças a Deus, fui comendo meu pernil, antenado no dito cujo, que não parava de falar. Só que era difícil de seguir, era naquele sotaque arrastado e mais errado que o dos colonos lá do sul que nunca aprenderam bem o português.

Aí tomei um susto. Um homem corpulento entrou intempestivo no bar e veio direto sentar com os supraditos.       E era o Bicão… Virei o rosto depressa, pra não ser reconhecido, e percebi que Alceu tinha baixado o olhar, com ar de desgosto. Em seguida ele levantou, foi pagar a despesa e saiu pra rua, eu fui atrás.

Andamos um bom bocado, até que ele parou na frente de um jipe.

Saltou um moreno grisalho sorridente e Alceu me apresentou.

– Olhaí seu Generino, encontrei um violeiro gaúcho que se extraviou  por aqui.

E  lá partimos nós, levantando poeira, serpenteando entre os igarapés, enquanto começava a cair uma chuva. Que bom, andar  assim aos solavancos num jipe, sem saber pra onde, no coração da Hileia, junto com gente boa, que nunca vi antes na vida. Que haverá de comer?

Alceu tinha me falado que trabalha de assistente social num abrigo de menores. Só que este abrigo-escola de menores… é um teatro.

Tem uma sala grande, com um palco, cortina e tudo, que ocupa um terço da área total. A entrada para o público é pela esquerda e na parede direita da sala há um quadro verde comprido. Uma porta nesta ala abre a um corredor, ao longo dele há um escritório onde – separado por um biombo – está o dormitório do Alceu. Ao lado uma cozinha, um chuveiro e um WC. Os menores dormem no palco, sobre camas de lona ou em redes. Serão talvez vinte meninos, entre uns 6 e 12 anos de idade. De manhã eles estudam, vem uma professora. De tarde trabalham um pouco e depois tem futebol. E os ensaios com Alceu.

(À noite antes de dormir fiquei matutando, enquanto o sono não vinha.  Gozado. Fui enxotado do Theatre da Borracha, quando me acomodava num canto escondido para dormir, depois que o pessoal da Voz da Profecia se retirou. Aí fui puxado por uma mão invisível, que me trouxe a este outro teatro. No primeiro, me deparei com as grandezas do passado fazendo tabelinha com as novas coisas do céu… E aqui me deito no chão, com a vida palpitando ao meu lado, escuto a respiração dos meninos. E cada um deles é uma imensa rede de rios e afluentes de sangue. E cada gota de sangue arrastada no turbilhão carrega histórias e sonhos da mata e do imenso dilúvio. E em cada cabeça de menino passa um filme, incessante e nunca repetido. E nenhum de nós sabe de onde viemos, nem para onde vamos. Assistimos um filme que roda dentro e fora de nós, e vivemos em um palco de teatro.)

Ali passou a ser meu domicilio em Manaus.

Categorias

  • Conexão | Brasil x Portugal
  • Cultura
  • História
  • Política
  • Religião
  • Social

Colunistas

A.Manuel dos Santos

Abigail Vilanova

Adilson Constâncio

Adriano Fiaschi

Agostinho dos Santos

Alexandra Sousa Duarte

Alexandre Esteves

Ana Esteves

Ana Maria Figueiredo

Ana Tápia

Artur Pereira dos Santos

Augusto Licks

Cecília Rezende

Cláudia Neves

Conceição Amaral de Castro Ramos

Conceição Castro Ramos

Conceição Gigante

Cristina Berrucho

Cristina Viana

Editoria

Editoria GPC

Emanuel do Carmo Oliveira

Enrique Villanueva

Ernesto Lauer

Fátima Fonseca

Flora Costa

Helena Atalaia

Isabel Alexandre

Isabel Carmo Pedro

Isabel Maria Vasco Costa

João Baptista Teixeira

João Marcelino

José Maria C. da Silva...

José Rogério Licks

Julie Machado

Luís Lynce de Faria

Luísa Loureiro

Manuel Matias

Manuela Figueiredo Martins

Maria Amália Abreu Rocha

Maria Caetano Conceição

Maria de Oliveira Esteves

Maria Guimarães

Maria Helena Guerra Pratas

Maria Helena Paes

Maria Romano

Maria Susana Mexia

Maria Teresa Conceição

Mariano Romeiro

Michele Bonheur

Miguel Ataíde

Notícias

Olavo de Carvalho

Padre Aires Gameiro

Padre Paulo Ricardo

Pedro Vaz Patto

Rita Gonçalves

Rosa Ventura

Rosário Martins

Rosarita dos Santos

Sérgio Alves de Oliveira

Sergio Manzione

Sofia Guedes e Graça Varão

Suzana Maria de Jesus

Vânia Figueiredo

Vera Luza

Verónica Teodósio

Virgínia Magriço

Grupo Progresso de Comunicação | Todos os direitos reservados

Desenvolvido por I9