Eles entram cantando e pregando: é chegada a hora, o fim está próximo. Também entro e subo para os andares superiores do Theatre, olho uma porcelana chinesa e as plantas, depois vou sentar na última fila da plateia. Fico contemplando a abóbada de pinturas alegóricas, muito verde e dourado com um lustre de bronze suspenso. E me deixo ninar pela voz que clama no deserto, lá do palco. Tem seu charme essa mistura de Belle Époque com Apocalipse…
Aí a voz no palco vai crescendo, joga frases que se metamorfoseiam em torpedos psíquicos que cruzam o ar e vão incendiar as almas. Ao meu lado uma mulher responde pontual a cada uma das invocações, lá pela terceira ela está esbravejando e suando em bicas. Antes que sobre algo para mim, resolvo sair de fininho dali.
(Em São Luís a analista Genoveva me fez um comentário sobre esse pessoal dos neopentecostais. Parece que eles estão introduzindo uma inovação em matéria de transe, uma nova maneira de puxar o inconsciente: com textos bíblicos e retórica adequada, produzem efeitos como os de uma sessão de umbanda, só que sem batuque nem caboclos.)
Tinha passado a noite na Praça da Saudade e ao despertar caminhei um pouco até chegar numa velha igreja com uma torre só. Por perto havia uma árvore, me sentei encostado nela e fiquei tocando a música do bang-bang que tinha visto no cine Popular, pra não esquecer. Aí uma pinta se aproximou e ficou escutando. Quando soube que eu era do sul, me pediu pra tocar o Coração de Luto. Levantei os olhos das cordas e encarei ele, enquanto matutava.
O Teixeirinha tem sido muito vilipendiado, muita gente chama essa música de Churrasquinho de Mãe… Acho que essa injúria começou com um certo crítico musical do Rio, que ficou com inveja do sucesso do passo-fundense de um metro e meio de altura. Sucesso que ninguém da indústria do disco conseguiu explicar, sem promoção ou divulgação. A letra pode ter partes toscas, mas predominam momentos de grande força, que contam a perda da genitora aos nove anos, queimada no fogo. Pra que mentir, não sou fã do Teixeirinha. Mas ali no forno do Inferno Verde…
Introduzi a milonga e mandei brasa, pensando que poderia resultar em algo de comer, ou pelo menos um café.
Ele não se fez esperar e já no segundo verso estava cantando também, tentando uma segunda voz, a pleno pulmão. Quando paramos de cantar vi que ele estava com os olhos molhados.
– Você canta legal – falei estendendo a mão.
– Eu sou o Alceu. Tu tá parando onde? – ele perguntou.
– Ainda não tenho onde ficar, estou procurando.
– Então já encontrou, vem com a gente. Vamos fazer juntos uma peça de teatro, eu escrevo, tu faz a música.
Pendurei a mochila nas costas e saímos caminhando em silencio. Escreve peças de teatro? Será que ele é daqueles crentes da Voz da Profecia? Caminhamos um pouco e ele parou na frente de um bar, me perguntou:
– Tá a fim dum sanduíche?
E entramos no bar, que era de um amigo dele. Foi uma festa, sanduíche de pernil com cerveja gelada. Mas na mesa ao lado da nossa dois homens conversavam, e um deles já tinha me chamado a atenção, quando fui dormir na Praça da Saudade. A roupa bem maltrapilha, achei que era um mendigo, tinha cara de europeu e algo de doente mental, pensei.
Ali no bar Graças a Deus, fui comendo meu pernil, antenado no dito cujo, que não parava de falar. Só que era difícil de seguir, era naquele sotaque arrastado e mais errado que o dos colonos lá do sul que nunca aprenderam bem o português.
Aí tomei um susto. Um homem corpulento entrou intempestivo no bar e veio direto sentar com os supraditos. E era o Bicão… Virei o rosto depressa, pra não ser reconhecido, e percebi que Alceu tinha baixado o olhar, com ar de desgosto. Em seguida ele levantou, foi pagar a despesa e saiu pra rua, eu fui atrás.
Andamos um bom bocado, até que ele parou na frente de um jipe.
Saltou um moreno grisalho sorridente e Alceu me apresentou.
– Olhaí seu Generino, encontrei um violeiro gaúcho que se extraviou por aqui.
E lá partimos nós, levantando poeira, serpenteando entre os igarapés, enquanto começava a cair uma chuva. Que bom, andar assim aos solavancos num jipe, sem saber pra onde, no coração da Hileia, junto com gente boa, que nunca vi antes na vida. Que haverá de comer?
Alceu tinha me falado que trabalha de assistente social num abrigo de menores. Só que este abrigo-escola de menores… é um teatro.
Tem uma sala grande, com um palco, cortina e tudo, que ocupa um terço da área total. A entrada para o público é pela esquerda e na parede direita da sala há um quadro verde comprido. Uma porta nesta ala abre a um corredor, ao longo dele há um escritório onde – separado por um biombo – está o dormitório do Alceu. Ao lado uma cozinha, um chuveiro e um WC. Os menores dormem no palco, sobre camas de lona ou em redes. Serão talvez vinte meninos, entre uns 6 e 12 anos de idade. De manhã eles estudam, vem uma professora. De tarde trabalham um pouco e depois tem futebol. E os ensaios com Alceu.
(À noite antes de dormir fiquei matutando, enquanto o sono não vinha. Gozado. Fui enxotado do Theatre da Borracha, quando me acomodava num canto escondido para dormir, depois que o pessoal da Voz da Profecia se retirou. Aí fui puxado por uma mão invisível, que me trouxe a este outro teatro. No primeiro, me deparei com as grandezas do passado fazendo tabelinha com as novas coisas do céu… E aqui me deito no chão, com a vida palpitando ao meu lado, escuto a respiração dos meninos. E cada um deles é uma imensa rede de rios e afluentes de sangue. E cada gota de sangue arrastada no turbilhão carrega histórias e sonhos da mata e do imenso dilúvio. E em cada cabeça de menino passa um filme, incessante e nunca repetido. E nenhum de nós sabe de onde viemos, nem para onde vamos. Assistimos um filme que roda dentro e fora de nós, e vivemos em um palco de teatro.)
Ali passou a ser meu domicilio em Manaus.